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Carlos Ruffeil e Tainá Marajoara: cozinhar é um ato revolucionário

O primeiro vocabulário que se aprende sobre Belém do Pará é este: tacacá, maniçoba, tucupi, filhote, açaí com tapioca, jambu…e a lista de palavras só cresce. O sotaque paraense nasce no paladar e a cidade realmente nos fisgou pelo estômago. Os frutos, as castanhas, as farinhas. Tudo parecia vir, porém, com um sobrenome que nos incomodava: “exótico”.

Quem já morou em algum outro país sabe que este é um apelido comum quando se fala em Amazônia, em Brasil. E nem precisa ir tão longe. Tainá Marajoara, ativista alimentar, me conta que foi em 2009, na cidade de São Paulo, que se sentiu uma estrangeira em seu próprio país quando falava dos saberes e técnicas culinárias amazônicas e paraenses. Junto ao chef de cozinha Carlos Ruffeil decidiu, então, criar o Iacitatá Centro de Cultura Alimentar.

Em tupi, Iacitatá é “a grande luz que fertiliza a vida na terra e faz germinar novas árvores, flores e frutos para alimentar a floresta”. O nome define: é lugar fértil. Terreno para se pensar a economia criativa, o turismo responsável, a transformação social, a proteção e salvaguarda dos conhecimentos tradicionais e a conservação da biodiversidade.

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A proposta soa grandiosa – e conhecer Tainá pessoalmente é compreender que se trata mesmo de uma revolução. Para muito além da culinária paraense como uma vitrine, é pelo seu valor ancestral, simbólico e identitário que ela luta junto a outros membros: cozinheiros, pesquisadores, fotógrafos.

Apresentá-la não é pela formação acadêmica e chegar ao Iacitatá não é pelas estrelas Michelin. Pelo contrário, a diferença entre gastronomia e cultura alimentar é a primeira aula que a paraense nos dá:  “O conceito de gastronomia é multidisciplinar. Agricultura é gastronomia, engenharia de alimentos também, fast food e transgênicos, assim como ecologia. São temas transversais e autônomos”. E define:

“Nós compreendemos como cultura alimentar tudo que está em volta do alimento, principalmente a espiritualidade, os rituais sagrados, os processos de cura, a tecnologia social de manejo e o cultivo tradicional”

 

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Por isso, entenda-se que, como eu tinha recentemente sido diagnosticada com um cálculo renal, fui aconselhada a não comer o peixe filhote, uma vez que a cultura amazônica faz essa ressalva sobre alimentos reimosos (ricos em proteína e gordura) por exacerbarem processos inflamatórios. Serviram-me, então, uma carne de boi selada na rapadura com a mais deliciosa farinha.

Os seis pratos que nos alimentam na casa de Tainá e Carlos são acompanhados de muitas histórias, saberes e feito às mais diversas mãos e técnicas. O beiju xica é feito por Dona Margarida, de Santarém Novo. A farinha é feita pelo Mestre Bene, da comunidade do Peritoro, em Tracuateua. A maniçoba é feita em parceria com a Slow Food Colônia Chicano e preparada com as técnicas ancestrais de moqueio e defumados em talos de muruci e na própria maniva.

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Técnicas essas que eles fazem questão de salvaguardar: “se você for acompanhar a dona Margarida, de Santarém Novo, para fazer o beiju xica, ela vai às cinco da manhã para o roçado escolher a mandioca que está boa. Aí ela faz a massa de mandioca, leva ao forno, e tem toda uma técnica para aquela farinha assar por igual, e ela vai colocar o coco que precisa estar numa determinada forma, espalhado de um certo jeito pra alcançar uma temperatura… e ela vai dobrar tudo aquilo e cortar de um modo específico” explica e provoca ainda:

“Se os cortes popoca, o quitinhado, o talhado, o retalhado, o tique-tique são milenares, por que usar nos alimentos paraenses técnicas de cozinha europeia? “

 

Em uma entrevista para o canal Comer em BH, Tainá conta sobre um anúncio nos aeroportos da cidade de um prato típico paraense, o pato no tucupi, onde ele vem acompanhado de arroz .”Já parou para pensar de onde vem esse arroz? Hoje, a ilha do Marajó sofre uma devastação absurda e a pulverização aérea de agrotóxicos para uma monocultura de arroz. E por que eu estou comendo ele com arroz e não com farinha, a base da comida amazônica?”.

O arroz servido por eles no Iacitatá, aliás, é produzido pelo MST (Movimento Sem Terra). E o orgulho maior do casal é dizer: “nada aqui é industrializado, até o óleo é de coco”. E a luta maior, percebo, é contra os agrotóxicos e toda a indústria que incorpora aos alimentos livres de veneno um selo de orgânicos, nos fazendo pagar muito a mais por isso.

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Os questionamentos são muitos e vêm de cedo:

“Quando na escola, eu aprendia sobre deuses egípicios, gregos, outros tipos de mitologia, e não me ensinavam nada sobre a cosmogonia ou o simbolismo marajoara?”

 

Um dos parceiros do Iacitatá e com quem também vivenciamos um pouco de Belém é Isaac Loureiro, pesquisador de cultura popular tradicional, criador e coordenador da Campanha Carimbó Patrimônio Cultural Brasileiro. Os músicos de carimbó são, muitas vezes, também mestres da cultura alimentar, como é o caso de Mestre Dico Boi, por exemplo, mestre na agarração de caranguejo.

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Conhecer a cultura alimentar amazônica paraense através deste casal, me fez pensar muito sobre a importância de instituições que conectam colaboradores e mestres. Para a nossa foto, Tainá busca o cesto de beiju feito por Dona Margarida e o segura nos braços. de alguma forma, me sinto acolhida também – em sintonia com quem luta pela salvaguarda dos saberes, pela oralidade de nossas histórias, pela ancestralidade de seu povo. E seguimos caminhando a muitos pés.


Obrigada Suelen Silva, Eder Oliveira, Tainá Marajoara, Carlos Ruffeil, Isaac Loureiro. Fotos: Raoni Godinho e Ana Luiza Gomes. Para saber mais:www.facebook.com/iacitata

 

 

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