Minha história com a comunidade quilombola do Mundo Novo, no interior de Pernambuco, já tem pouco mais de um ano. Quem acompanha meu trabalho conhece algumas histórias dessa vila simples, porém, rica no que diz respeito aos aspectos culturais que moldaram nossa sociedade.
Não sou um antropólogo, musicólogo ou etnógrafo especialista em cultura brasileira. Sou fotógrafo e narro o que me encanta: a força dos laços identitários que transcendem a consanguinidade e o parentesco, e vinculam-se às ideias tecidas sobre valores, costumes e lutas comuns.
Pequena comunidade do Mundo Novo, Buíque, PE.
É em Novo Mundo que eu observo os pés pisarem com força a terra como uma alusão ao trabalho de pilar o chão de barro das senzalas. Neste ritmo sincopado, apresenta-se o Samba de Coco – que motiva tensões e, ao mesmo tempo, realiza o papel ritualístico de promover engajamentos políticos múltiplos e trânsitos de sentidos, encontros e desencontros interculturais.
Neste movimento, existem vários planos de significação: dança, ataque, conflito, ódio, revolta, medo, prazer, riso, esperança e liberdade. Sigo a dança e tento entendê-la melhor. Mas sou interrompido:
“Não é apenas assistindo o samba acontecer que você vai entendê-lo. É sentando para um almoço, ouvindo, conversando e escrevendo. É aí que se entende o porquê que o samba acontece”
Dona Ivone sentada na cozinha da casa de taipa que seus avós construíram sambando.
Quem me conta é Dona Ivone, 79 anos, prima de Dona Zéfa, atual presidente da Associação dos Quilombolas do Mundo Novo. A família delas é quem mantém viva essa tradição familiar, sendo Ivone quem mais teve contato com os filhos e netos da formação do Quilombo. Por isso, é a ela que pergunto quando exatamente tudo começou.
“Tu ta perguntando a coisa errada. Não é que o Samba teve origem. Um menino não nasce pra falar? Acontece assim, de Deus, não é isso? Pois então! O samba aqui é isso. Aqui a gente nasce pra cantar e sambar. E pra trabalhar! Porque o Samba só tem sentido no trabalho. Pois se tu quiser saber do samba, eu te digo, tu tem que, primeiro, saber da história de nós”
Foto de Antônio Martiniano. Mundo Novo – Buíque – PE
A foto mais antiga é justamente a do fundador do quilombo, Antônio Martiniano, que fugiu de um engenho em União dos Palmares, Alagoas, foi recapturado e forçado a ir trabalhar num engenho de açúcar na Zona da Mata do Recife.
Dona Zilda relembra cantos da infância. Mundo Novo – Buíque – PE
Quem me conta é dona Zilda, 60 anos, bisneta mais velha de Antônio e irmã mais velha de Zéfa. “Depois de um tempo, fugiu de novo, dessa vez com um grupo grande de escravos. Não se sabe a data.” Estima-se que chegou em Buíque, agreste pernambucano, nas últimas décadas do século XIX. Morreu ali mesmo, no Quilombo que ajudou a formar, com mais de 100 anos. A foto foi feita já no fim da vida de Antônio na década de 1950.
Zenilda me mostra as saias feitas por ela. Mundo Novo – Buíque – PE
Já atualmente, é Zenilda, sobrinha de dona Zéfa, que ensina a tradição para as meninas e meninos do quilombo:
“Eu cuido do figurino, ensaio e ensino o que sei. Hoje não é como antigamente, só se dançava o coco no trabalho, quebrando milho, subindo casa de barro, vi minha mãe fazer muito isso. Mas eu gosto do samba mesmo é por que é uma brincadeira… mesmo trabalhando, a gente tá brincando! O coco tem muito a ver com a minha criancice. Aquela musica diz assim:
‘Eu vou cortar capim pra meu cavalo comer.
Eu vou fazer assim “chilinlin chilinlin”
Pra meu bem ver,’
Menino! Eu ia pra roça toda ‘emperequetada’ pra dar de comer ao cavalo só porque meu namorado, hoje meu marido, tava no caminho! (risos). Sambar o coco é isso… é voltar ser moça e brincar. ”
Atualmente, metade das meninas e meninos do quilombo viajaram para Minas e São Paulo em busca de trabalho. Entretanto, Zenilda me diz que as meninas fizeram questão de levar as saias que usam para se apresentar. “Elas disseram que vão sambar para matar a saudade.”
A essa altura da conversa, Done Ivone já está me servindo um café com milho cozido e contando:
“O Coco, meu filho, é tudo aquilo que agente vive! É minha vida. Meu pai cantava minha vida, antes de eu nascer. Eu cantei a dos meus filhos e dos meus netos… quando eles ouvirem um coco, vão se ver na história, assim como nós tudinho aqui se vê”.
Está certo dona Ivone. Eu volto em breve e sempre. É aqui que me vejo envolto da poeira do tempo…
Por Tiago Henrique