Foi Claudio Silvano quem me apresentou o trabalho de Gabo Morales e algumas boas leituras sobre fotografia. Inspirada em um dos livros indicados, começo uma série de entrevistas: Por que você fotografa?
Conheceremos uma São Paulo verde. Caminharemos pelo estado de Tocantis por estradas percorridas coletivamente. Iremos na direção dos movimentos imigratórios. Vamos transitar entre as fronteiras da fotografia documental e não documental. Tantos lugares para entender o motivo pelo qual o fotógrafo, Gabo Morales, é.
Marsilac, SP
Em seu trabalho autoral, Marsilac, você mostra uma São Paulo verde. Como você chegou ao local e à ideia de criar esse trabalho? Como é fazer esta pesquisa fotográfica durante mais de 5 anos?
Eu estava em busca de um território onde trabalhar. Qualquer território, em qualquer sentido. Em 2012 tive uma pequena revelação quando fazia uma pauta como repórter fotográfico de um jornal. No extremo da Zona Leste, enquanto – eu e o motorista – aguardávamos a chegada de um personagem da reportagem, comecei a prestar atenção no movimento na rua. Era uma avenida comercial cujo nome desconheço até hoje. Bem movimentada. Pessoas com sacolas olhando as vitrines, outras apenas passeando, padarias e bares cheios, muitos carros estacionados, documentos debaixo do braço, entregas sendo realizadas. A revelação foi descobrir que aquela rua era um centro, onde gravitavam interesses da comunidade dos arredores.
São Paulo tem seu centro, a Sé, mas cada região tem seu sub-centro, cada bairro sua rua comercial, cada punhado de quarteirões sua padaria. Muitas vezes não é preciso sair de sua comunidade imediata para viver do necessário. Essa iluminação banal me vez ver com outros olhos a forma como eu via e vivia na cidade. É preciso ver e viver para além do hiperlocal. O meu bairro era essencialmente o centro da minha vida urbana, a partir dele eu crio expectativas, vieses e opiniões que aplico a toda metrópole, mas que nem sempre fazem sentido cinquenta quarteirões adiante. Por sorte, é um bairro central – Santa Cecília –, onde é mais fácil ter acesso à infraestrutura necessária para viver com alguma qualidade. A partir dali eu experimentava a cidade, mas se eu estivesse morando no bairro mais distante do centro real, ainda assim teria que transformar aquela comunidade no centro da minha vida paulistana?
Marsilac, SP
E qual é o bairro mais distante, mais isolado da cidade? Marsilac. Então eu fui até lá e comecei a fotografar a experiência de viver ali. Tanto para entendê-la, quanto para aprimorar a minha experiência da cidade. Desde sempre, evitando chamar aquele distrito, nem que informalmente, de outra cidade. Parece outra cidade? Não sei, mas certamente não é. Marsilac é tão São Paulo quanto a Sé, depende apenas de que discurso você quer favorecer. Se o meu discurso é que cada canto da cidade tem suas próprias zonas gravitacionais, se cada bairro reúne a comunidade em um centro, não faz sentido resumir São Paulo como uma coisa só: cinza, verde, cosmopolita, provinciana, conservadora ou progressista. Fotografia não é estatística, para abraçar as características da maioria e sustentar seu discurso. Ao mesmo tempo, é um desafio colocá-la a serviço da complexidade.
Sempre vi as coisas assim: para quem vive no centro, Marsilac é o fim da cidade. Para quem vive no Marsilac, ali é o começo da cidade. Lógico que meu trabalho não é ficar fazendo semântica. É político também, no sentido que eu busco questões que tornam mais verdadeira a tese de que Marsilac é o fim. O distrito é duplamente isolado: a cidade para consigo e vice versa. Há pouca infraestrutura, principalmente transporte, mas também poucos equipamentos culturais e sociais, particulares e públicos, para a comunidade. A natureza é abundante, mas uma composição de trem carregando milhares de toneladas de soja e minério de ferro pode passar a noite fungando a alguns metros da janela do seu quarto.
A ideia de fazer isso em cinco anos – no mínimo – é porque eu quero ver se há mudanças na experiência de viver no Marsilac. A vida urbana é muito dinâmica, mas Marsilac é uma zona híbrida, nem tão urbana, nem tão rural. O que acontece naquele território em cinco anos? O que muda, o que fica como sempre esteve. Eu achei meu território, meu espaço de trabalho, agora estou tentando entender seu tempo.
Marsilac, SP
Você é membro do coletivo de fotografia Trëma. Quais as diferenças entre criar de forma autoral e com um coletivo?
Trabalhar em grupo muda todo o processo. Os territórios se alargam – são a soma dos interesses de todos –, o cotidiano é rico em debates e resoluções. Sua produtividade e criatividade é multiplicada. Mas é preciso ter uma visão clara do que se quer fazer em grupo. Há trabalhos que fluem melhor quando trabalhamos sozinhos, sem pressa, num debate solitário. Em grupo se perde alguma autonomia, mas os benefícios compensam.
Por que fazer um projeto “Lagoa da Confusão: Wanderlândia” fotografando um estado tão jovem como Tocantins no coração do Brasil?
Porque o objetivo principal da Trëma é discutir o Brasil de hoje. A gente trabalha três temas a partir dos quais abordamos a relação entre o personagem e seu espaço: identidade, comunidade e fronteira. E olhamos cada um desses temas no sentido mais amplo possível. Então chegamos ao Tocantins para entender que tipos de consequências sua emancipação, ou a criação de sua fronteira 25 anos antes, teve na identidade de quem vive no Estado. Identidade, comunidade e fronteira. Ajuda o fato de que, pessoalmente, não sabíamos muito sobre o Estado e julgamos que nossa ignorância não era um caso isolado. Longe do Tocantins nos parecia que poucas pessoas se demoram no que acontece dentro do Estado, que curiosamente está no exato centro do Brasil.
Como sozinha a fotografia documental não parece capaz de dar conta da complexidade do homem no seu espaço e no seu tempo, então usamos esse trabalho para aprimorar nossa narrativa em texto, essencial para contextualizar melhor o que estávamos fazendo e o que encontramos.
Lagoa da Confusão: Wanderlândia, 2015
Você pode contar algo sobre o novo projeto que está trabalhando junto ao coletivo Trëma?
Em 2014 a Trëma realizou um projeto, ainda inédito, provisoriamente denominado Carte-de-Visite. Tratava-se de uma série de retratos de 40 estrangeiros que, recém chegados ao Brasil, passaram pelo centro de São Paulo a caminho de um novo endereço. Após ser fotografado, cada imigrante foi convidado a escrever, de próprio punho, uma mensagem, que seria impressa no verso do retrato, formando um cartão postal que então seria enviado a uma pessoa escolhida por ele ou por ela: qualquer pessoa, em qualquer lugar do mundo. Nós guardamos esse trabalho conosco porque faltava ali alguma adendo; e agora estamos trabalhando nesse adendo, Memento, cuja proposta é revisitar, por meio da fotografia, as memórias da vida de um imigrante recém-chegado no Brasil.
Arnel Monpremir, 28 anos, Haiti – “Eu cheguei em segurança, graças a Deus, e não vou te esquecer”.
Lendo o livro “Por que as pessoas fotografam” de Robert Adams, te pergunto: por que você fotografa?
Provavelmente não tenho uma razão única; e se tivesse, não seria uma razão muito poética. Eu preciso me expressar de alguma forma que não exija muito da minha natureza introvertida; é algo sobre o qual não tenho controle. Já toquei instrumentos, escrevi contos, desenhei… mas nada disso com o mínimo de proficiência necessária para transformar o meu discurso em algo interessante, relevante ou valioso para os outros. Quando decidi começar a fotografar de verdade, acho que era um modo de exercer essa necessidade íntima sem precisar de uma grande técnica para atingir as pessoas – mesmo que poucas pessoas. E como transformei isso na minha profissão – talvez ingenuamente – eu também fotografo porque preciso viver.
Lagoa da Confusão: Wanderlândia, 2015
Para saber mais sobre Gabo Morales, visite: gabomorales.com, www.fronteiras.org e www.trema.co. Obrigada, Cláudio Silvano. Fotos de Gabo e do Coletivo Trëma.