Últimos Artigos

“Eu nasci para viver em movimento”, Marizilda Cruppe

Marizilda Cruppe é técnica em mecânica, abandonou o curso de engenharia para ser piloto de avião até descobrir sua vocação no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo durante 4 anos até decidir migrar para a fotografia documental em 2011. Seu interesse por temas relacionados aos direitos humanos e civis, desigualdade social, doenças negligenciadas e meio-ambiente a fazem viajar pelo Brasil e pelo mundo trabalhando para  organizações como Greenpeace, Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Médicos sem Fronteiras.

Soube de seu trabalho pela série mais recente de fotos de celular que ela faz das suas novas moradas. É que Marizilda não tem casa fixa, ela vai aonde a fotografia a leva. Andarilha no sentido literal da palavra, sua fala me encanta quando ela assume que nasceu mesmo para estar em movimento pois essa é a forma que ela consegue estar sempre presente:

Mato Grosso State occupies an area in western Brazil largest than Texas. According to the Conab (Companhia Nacional de Abastecimento - National Supply Company) latest data released last March, Mato Grosso can produce a harvest of 48.2 million tons of grain in the 2014/2015 crop in an area of 13.2 million hectares, in addition to the production of cotton, poultry, pigs and cattle. The Chinese are interested in investing in Brazil and build a railroad to connect Mato Grosso to Rondonia, Acre and Peru, reaching the Pacific Ocean, facilitating the flow of local production. Last June, a group of 21 Chinese formed a delegation, including Ambassador to Brazil, Li Jinzhang, businessmen and bankers. The group's mission was to make a road trip of 1500 kilometers between Porto Velho and Cuiabá, where it will pass a stretch of transoceanic railroad. The trip included a visit to Lucas do Rio Verde, a 70,000 inhabitants city in the margins of the road BR-163. In this photo, fans of Luverdense, the football team of Lucas do Rio Verde watch a match of the second league of the Brazilian Soccer Championship in the city stadium. Photo Marizilda Cruppe. Assignment ID 30177200AA: De onde surgiu a vontade de ser fotojornalista?

M: Eu acho que o fotojornalismo sempre esteve no meu sangue. Em um período pré internet, morando numa cidade (Nova Iguaçu) sem museus, boas livrarias e até boas bancas de jornal, sem nenhum parente ou amigo da família jornalista, era difícil ter acesso ao fotojornalismo.

Quando eu tinha 18 anos, eu e o meu namorado na época, economizamos dinheiro um tempão para comprarmos um aeromodelo radio controlado. Nós dois éramos Técnicos em Mecânica, trabalhávamos desde adolescentes e estudávamos Engenharia. Antes disso eu já tinha economizado mais tempo ainda pra comprar minha primeira câmera, uma Pentax MX usada, que eu carregava comigo pra todo lado. Um dia, o nosso avião caiu e eu fotografei a historinha do acidente aéreo em vez de cumprir o papel de aeromodelista, recolher os destroços e entender porque nosso amigo o havia derrubado.

Em outra ocasião, quando eu já tinha trancado a faculdade pra tentar ser piloto, eu estava para decolar com meu instrutor quando o avião que decolou antes de mim caiu durante a decolagem. Eu saí do avião e corri para o local do acidente. Um outro instrutor me deteve no meio do caminho e pediu para eu cuidar das mulheres dos pilotos que tinham presenciado o acidente. Eu era a única mulher entre alunos e instrutores e coube a mim consolá-las, embora eu não estivesse muito apta para a responsabilidade que ganhei unicamente por ser mulher.

Felizmente, eles não morreram. Ou seja, eu sempre tive o instinto de reagir rápido e correr pra notícia. Ao longo do tempo, eu migrei da descrição do fato para o entendimento do fato. Hoje eu prefiro contar menos histórias e me dedicar mais tempo a elas. Mesmo que sejam historinhas de um dia, não quero mais fotografar olhando pro relógio porque tenho que sair correndo pra outra pauta.

foto_12foto_09foto_13Registros de outubro de 2014 até dezembro de 2015 da família Berman-Rincon

A: Durante a sua trajetória, qual história pelo Brasil mais te marcou ao cobrir?

M: Muitas histórias me marcaram, seja profissionalmente, seja pessoalmente. Lembro de uma foto que fiz em Marabá, de uma vítima de escalpelamento causado pelo eixo do motor de uma embarcação. Era meu aniversário e a mulher que fotografei tinha uma história de vida trágica e muitas sequelas físicas do acidente. Ela tinha a minha idade e uma serenidade no olhar e no discurso que eu carrego comigo até hoje. Ela não sentia revolta, nem mágoa, nem rancor. Amava a vida. Ela mexeu muito comigo.

Outra história que cruzou a fronteira do profissional para o pessoal é a da família Berman-Rincon, que acompanho há 5 anos. Carla e Cinthia estão juntas há 15 anos e desde que as acompanho tiveram dois filhos, um casal. Fotografei o parto dos dois. Estive presente em tantos momentos ao longo desses anos que acabamos nos tornando amigas. Ilan e Emilia já se acostumaram comigo e com a minha câmera e eu já me entitulei Fotobiógrafa da família que é de uma generosidade imensa. Quando estou no Rio é a casa onde passo mais tempo. É um prazer estar com eles. Este ano foi intenso para as meninas que lidaram com a chegada da Emilia e o tratamento da Carla. O amor delas é tão forte, tão bonito que a impressão que dá é que cresceu ainda mais depois de passarem pelo câncer. Elas não tem ideia do quanto aprendo com elas.

Mais recentemente, durante uma história sobre Emergências, eu fotografei o atendimento de uma idosa que não resistiu aos ferimentos causados pelo atropelamento e faleceu durante a cirurgia. Os médicos saíram para dar a notícia para a filha, com quem eu já havia conversado e estava sozinha no corredor do hospital. Fiquei distante, pois era um momento íntimo demais. Quando ela recebeu a notícia colocou um casaco no rosto para segurar o choro. Foi meu único clique. Não sei se ela percebeu minha presença, mesmo eu estando distante, ou se olhou para os lados em busca de apoio. Quando ela me viu chorou muito. Segui até onde estava, me sentei ao seu lado e ela me abraçou e chorou no meu ombro. Fiquei com ela até a família chegar.

Screen Shot 2015-12-11 at 6.14.27 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.14.47 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.46 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.02 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.27 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.16 PMEnsaio “Cruzada São Sebastião”, por Marizilda Cruppe.

A: O que é o ensaio Cruzada São Sebastião?

M: A Cruzada São Sebastião é um projeto de habitação idealizado pelo arcebispo Dom Helder Câmara para abrigar moradores de uma favela da Zona Sul do Rio. Era para ser um projeto de inclusão social, mas os moradores da Cruzada, em sua maioria negros, se sentem excluídos, pois a Cruzada fica no Leblon, o metro quadrado mais caro do Rio. Há muita pressão do mercado imobiliário e de uma parcela dos moradores do Leblon para que a Cruzada deixe de existir e os moradores sejam removidos dali.

Essa matéria foi proposta pelo jornalista Rogerio Daflon, quando trabalhávamos no Jornal O Globo, por conta dos 55 anos da Cruzada. Nos dedicamos à história, fomos ao local algumas vezes, até mesmo fora dos nossos horários de trabalho, pois queríamos mostrar os moradores de perto, dignos como são. Precisávamos de tempo – coisa rara em jornais – para nos aproximarmos, pois os moradores da Cruzada, comumente retratados de forma discriminatória, eram avessos a jornalistas. Com razão, né?

A: Você decidiu não ter morada fixa e caminhar por onde a fotografia te leva. Por que?

M: Vejo esse movimento mais como uma consequência das escolhas que fiz ao longo da vida do que como um ponto de partida. Não ter morada é um ponto de chegada. Minha geração foi criada para ter raízes. Eu até tentei. Durante metade da minha existência vivi em conflito com este modelo da estabilidade. Passei pela fase de transferir responsabilidades por não me encaixar, depois pela fase de me culpar porque eu só pensava em sair da gaiola enquanto minha geração ia se prendendo cada vez mais. Finalmente, estou em paz porque entendi que não é todo mundo que nasce pra seguir durante uma vida a profissão que escolheu quando adolescente; não é todo mundo que nasce para se aposentar como celetista; não é todo mundo que nasce pra casar e ter filhos. Eu nasci pra viver em movimento. Então, não ter endereço fixo, embora tenha sido uma decisão repentina, foi desenhada ao longo dos anos, mesmo que inconscientemente.

Imperatriz, MA_3965Formoso, MG_0417Chapada Gaúcha, MG_0051Parintins, AM_3015Série “Onde a fotografia me leva”, por Marizilda Cruppe

A: Como está sendo essa trajetória?

M: Tem sido muito interessante. Um exercício diário de desapego, de ajuste, de observação do entorno e de mim mesma. Não tem como fugir do palavrório cliché, mas é isso. Tô gostando de cada dificuldade, de cada conquista, de cada “certeza” que deixo pelo caminho. Não ter morada significa viver o momento presente. Minha mente é inquieta demais e não consegui chegar a viver o hoje através da meditação. Sem endereço fixo, sem um projeto formal, a não ser seguir a Fotografia, me fez sair da zona de conforto e viver um dia de cada vez.

A: Para você, o que é “morada”?

M: Morada é onde, de alguma forma, eu me sinto parte. Seja como testemunha com a minha câmera, seja por compartilhar uma emoção, um sentimento, uma causa. Me sinto em casa em muitos lugares, sozinha ou acompanhada, por estímulos externos ou internos. Minha morada sou eu mesma e tenho tido a oportunidade de dar uma boa arrumada. Casa é assim mesmo, tem que cuidar sempre.


Marizilda Cruppe  fundou o coletivo de fotógrafas EVE Photographers; foi membro do júri “Images to Stop Tuberculosis Photo Contest”, “Estação Imagem Mora”, em Portugal e “World Press Photo”, em Amsterdã, por duas vezes. Na área de educação foi instrutora em workshops de fotografia documental e narrativas multimídia para o World Press Photo, em Angola, e para a Open Society Foundations, Tufts University e Stop TB Partnership, no Rio de Janeiro. Foi palestrante convidada na última edição do Festival de Fotografia de Tiradentes e colaborou para publicações como New York Times, GQ, Editora Trip e o recém-lançado website Projeto Colabora.

“É muito interessante a descentralização da produção cultural no Brasil”, Maureen Bisilliat

Era uma manhã de segunda feira quando fui convidada a acompanhar uma entrevista com Maureen Bisilliat, artista conhecida por sua importante contribuição à fotografia brasileira. Para a minha surpresa, Maureen topou prolongar a conversa e falar para o Andarilha, contando um pouco sobre suas mais recentes andanças; sem querer muito visitar o passado, mas sim curiosa, atenta às mudanças, vivendo o agora.

Nos encontramos onde o antropólogo Darcy Ribeiro lhe deu a tarefa de caminhar pelo Brasil e por alguns países como Peru, Equador, Bolívia, Guatemala e México em busca de construir o acervo do Pavilhão da Criatividade, no Memorial da América Latina, em São Paulo.

“O Darcy nos escolheu: eu, Jacques, meu marido, e o arquiteto Antonio Marcos Silva. Naquela época, viajávamos por estradas muito ruins; quanto mais difícil era o caminho, melhor, mais aventura, mais apreço às peças compradas. A ideia surgiu pois eu tinha feito muitas fotos para as revistas em lugares bem distantes e eu abria os caminhos para as pesquisas”.

acv_imgcapa_1412363808acv_imgcapa_1412363799Fotos da série “Bumba-meu-boi na Festa de São João” (1978). Acerco IMS.

É ali que ela se lembra do sucesso que foi, durante 20 anos, a sua galeria especializada em arte popular brasileira, O Bode: “chamava assim pois o bode é um animal nobre. Ele se sustenta de qualquer coisa, é uma espécie de resistência feroz. Com pouco, ele é o rei do pedaço”.

Maureen é inglesa de nascimento e, como filha de diplomata, teve uma infância bastante nômade: “inicialmente, eu vim ao Brasil para casar com um algodoeiro, o pai da minha primeira filha. Depois de sete anos nos separamos e, dois anos depois, passei novamente pelo Brasil e conheci meu segundo marido, Jacques. Voltei para ficar em 1957”.

Após estudar artes plásticas em Paris, foi trabalhar na Editora Abril, entre 1964 e 1972, onde se encontrou na fotografia – mais exatamente durante o raro período na história da imprensa brasileira, quando a revista Realidades lhe dava a oportunidade de levar o tempo que precisasse em suas pautas pelo país.

“Justamente por me acostumar a conhecer tantos lugares e comunidades diferentes nessas andanças, eu buscava algo mais próximo do real, por isso, a fotografia chegou em minha vida após a pintura.”

 

Sou surpreendida quando ela me confessa que sua real paixão é a edição e não necessariamente a fotografia. “Eu nunca gostei muito mesmo de fotografar. Eu sou ótima editora de fotos! Eu gostava desta parte da fotografia, a seleção das fotos, muito mais do que o momento de fotografar. Antes você não via o que ia sendo registrado e tinha-se aquela dúvida de como estava ficando. Hoje você já vê. É ruim; é bom. É ruim; é bom. Então, o que eu gosto é de sequenciar as imagens depois”.

Desse prazer nasceu seu trabalho audiovisual ao qual ela se dedica atualmente: “eu tenho uma pequena ilha de edição em casa e durante os últimos 5 anos estou coletando e organizando centenas de materiais, fruto da minha trajetória, para fazer um documentário longa-metragem chamado Equivalências. O que eu mais gosto e sou boa mesmo é em editar memórias; é trabalhar no acervo dessas memórias.”

tumblr_lkw0hs0rYd1qjg3iko1_1280maureen-bisilliat-03

Fotos da série “Pele Preta” (1965) e uma entrevista com o “menino-anjo” das fotos, Assis, em 2014. Acervo IMS.

Mas por que o vídeo? “Eu passei para o audiovisual, pois eu adoro a palavra e o gesto. Na fotografia, você tem que, de certa maneira, transpor o movimento para o estático sem perder esse gestual. Mas eu sempre gostei da palavra”.

Faz sentido. Da leitura de grandes autores brasileiros nasceram os seus maiores ensaios como “A João Guimarães Rosa”, inspirado em Grande Sertão: Veredas, ou mesmo, “Bahia Amada Amado”, instigado pela obra de Jorge Amado. “Alguém me deu o Grande Sertão, comecei a ler e querer conhecer cada lugar para saber até que ponto o autor foi diretamente inspirado pela região e pelas pessoas”. Da palavra surgiu sua fotografia e à ela retorna nos vídeos.

“Você é como Manoel de Barros, adora desacostumar palavras?” brinco. “Isso! Eu adoro cutucar a palavra, sabe?”

 

02418GUI1809-25 (2)20150817075719135651aRosamenor02418GUI1823-01-thumb-800x1227-117503
Da série “A João Guimarães Rosa” (1966). Acervo IMS.

Comento a Maureen que muitos artistas citam seu nome e o de Claudia Andujar quando pergunto quais são as grandes referências deles na fotografia. “Eu adoro o trabalho de Claudia Andujar. Ela é fantástica! Ela tem algo a mais do que eu, ela zelou pelas condições territoriais dos ianomamis. Enquanto eu dediquei um capítulo da minha vida ao Xingu, ela se dedicou uma vida aos ianomamis.”

Mas então, quais são as referências e inspirações de Maureen?

“Recentemente, eu estive na Bahia, em Feira de Santana, para o Festival de Fotografia do Sertão. E achei muito interessante esse encontro com jovens, sabe? Os palestrantes muito bem escolhidos, os ouvintes mais ainda. O Tiago Santana é especial, ele faz uma dupla com o Audálio Dantas, jornalista, que é muitíssimo interessante. Outra pessoa que adorei conhecer foi o fotógrafo paraibano Aurílio Santos, fundador do Acervo Cultura Zé Ramalho, em Brejo da Cruz, cidade natal do cantor. Ele criou esse centro por paixão e as fotos que ele faz são belíssimas. Eu o achei interessante”.

Fico realmente feliz ao ver o entusiasmo de Maureen ao falar que o que a inspira é a nova geração de fotógrafos. Não necessariamente por uma nova técnica ou olhar, mas pelo simples e importante fato de muitos deles não virem dos grandes centros do país – e sim de regiões consideradas marginais até então.

“São desses encontros que eu acredito que vão florescer novos fotógrafos. O bom é estar acontecendo tudo isso fora dos grandes centros. Isso atrai pessoas, pessoas de todo o tipo, pessoas fora do comum”.

 

Conto a ela que o Andarilha busca justamente disseminar e estimular essa produção que transborda fronteiras – fruto de um desejo que cada um tenha propriedade de sua voz para falar do e sobre o seu lugar, seja ele qual for.

“É muito interessante pensar sobre essa descentralização da produção cultural no Brasil!” repete ela duas vezes para o meu gravador. Na terceira, exclamamos juntas.

Screen Shot 2015-12-14 at 12.07.36 AM Screen Shot 2015-12-14 at 12.07.43 AM

Da série Xingu (1975). Acervo IMS.


Maureen Bisilliat estudou pintura com André Lhote em Paris (1955) e no Art Students League em Nova Iorque (1957). Mudou-se para o Brasil em 1957 e trabalhou como fotojornalista para a Editora Abril entre 1964 e 1972. Foi proprietária da Galeria de Arte Popular O Bode (1972 a 1992). Recebeu bolsa da John Simon Guggenheim Foundation, Estados Unidos (1970), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (1981/1987), da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de São Paulo (1984/1987) e da Japan Foundation (1987). Formou o acervo de arte popular do Pavilhão da Criatividade do Memorial da América Latina, São Paulo, o qual dirige desde 1988. Recebeu o prêmio Melhor Fotógrafo da Associação dos Críticos de Arte de São Paulo (1987). [breve currículo da Coleção Pirelli]


Obrigada Adélia Borges e Maureen Bisilliat. Foto do topo da série Caranguejeiras (1968).

 

“Procuram-se Vanessas para falar de amor”, Maria Carmencita Job

Entrevistando algumas mulheres escutei diversas vezes sobre amor. Mas também escutei sobre alguns corações partidos – e as viradas que a vida deu após alguns deles. Quando conheci a pesquisadora e documentarista Maria Carmencita Job esse tema se tornou a superfície exposta de uma pele fina e forte, sensível e cicatrizada.  Nossa conversa me fez pensar como a nossa cultura tão patriarcal nos silencia. Quantas mulheres gostaríamos de ser e não somos? A quantas gostaríamos de dar voz e não damos?

Encontrei neste curta de Carmencita uma tentativa de uma de suas mulheres internas falar. Sobre amor. Falar sobre amor de um lugar onde muitos acreditam que o encanto se perdeu.“Procuram-se Vanessas para falar de amor” dizem seus cartazes espalhados nas ruas. Vai ver foi isso; com um coração deserto, ela buscou no terreno mais alheio a si, o amor.  E em Vanessa, ela o encontrou:

928285_1619782638302800_1919314589_n

A: De onde surgiu essa vontade de falar sobre mulher e amor através da prostituição?

MC: Há 4 anos venho estudando sobre os estados de amor, paixão e sexualidade através do monitoramento de tendências a partir da antropologia das emoções. Todo este estudo sempre teve por princípio iniciativas práticas de troca de histórias e coleta de percepções a partir de mulheres. O começo se deu em 2012 em saraus em algumas cidades brasileiras por onde passava em um diálogo com o mote sexualidade. Acreditava que este percurso era batizado pela complementaridade destes encontros quânticos onde a sensibilidade era percebida por memórias sexuais.

Foi quando conheci a Vanessa (trabalhadora sexual) que me fez entender estes estados sublimes através de outro ponto de vista. Lúcida e forte, ela acolheu meus questionamentos sobre estados de amor e causou uma verdadeira revolução dentro do meu corpo simbólico e físico – me levou para o topo da montanha e me fez mergulhar em um lago cheio de peixes brilhantes onde tudo que eu acreditava e entendia sobre amor se derreteu.

A partir daquele encontro, entendi o infográfico patriarcal e passivo em que me encontrava como mulher e senti uma necessidade absurda de encontrar mais “Vanessas” para ilustrar este estado real, que precisava ser integrado e percebido por mais mulheres. Saí do nosso encontro com a certeza de que mostrar histórias de afeto, através de um documentário, a partir de mulheres (e também prostitutas) era o melhor que poderia fazer para cruzar estes dois mundos de sexualidade e amor.

A: Por que o filme chama “N” de Vanessa? Como você conheceu “Nicole”?

MC: “N” é a primeira letra do nome da Nicole, protagonista do filme, que é um prostituta. Funciona como um código, um diagrama que ilumina o lugar onde toda mulher pode estar. Esta letra “N” mostra o ponto de partida áureo de cada mulher. O significante – que dá início – a este movimento de ser uma puta mulher.

A: Apenas mulheres foram escaladas para a realização do filme? Conte um pouco sobre o processo de pesquisa, gravação e produção do curta.

MC: O curta metragem “N”. De Vanessa faz parte do Projeto Transmidia As Vanessas, onde o longa metragem “Procuram-se Vanessas Pra Falar de Amor” está na base, junto de uma série para TV, uma websérie, um livro e um aplicativo: todos canais de contato com o feminino.

Para ele acontecer da forma mais conectada possível dentro do set, nada melhor que colocar somente mulheres para fazer desta arte um espaço de troca. Além de ser uma proposta de resistência política, aonde inauguramos um novo lugar ativo para mulheres no cinema. Seremos mulheres, realizadoras e ouvintes de corpo todo presente desta história. Este filtro dá mais trabalho, confesso, pois juntar muitas mulheres para um projeto destes, requer um empenho a mais. Nunca uma mulher faz uma coisa só, e para tê-las – dedicadas – de forma plena e segura, precisamos de grana, coisa que ainda não rolou de forma concreta dentro do projeto.

A pesquisa já foi realizada em Porto Alegre (aonde moro e onde consegui ter mais tempo com as meninas na rua); em São Paulo (aonde visito alguns puteiros da Augusta e revejo a Vanessa oficial) e no Rio de Janeiro (na incrível Vila Mimosa, aonde pude ter acesso ao Observatório da Prostituição, um núcleo organizado pela antropóloga Soraya Simóes na UFRJ).

A gravação do curta foi feita toda de forma independente. Ele nasceu do momento de vida da Nicole, que estava “saindo ‘da prostituição por causa de uma história de amor. Essa narrativa me fez mudar de uma gravação de uma entrevista comum para um curta metragem. Ela é uma personagem que fala por si só, não poderia deixar de mostrar esta menina mulher para o mundo. 

A: Por que fazer um documentário?

MC: O documentário busca anunciar a posse do discurso daquele que se propõe a falar. O meu desejo desde o início é dar voz a estas mulheres prostitutas, mudando a chave cultural deste lugar que, no imaginário social, acredita ser passivo e triste. É bonito ver como cada um recebe e acolhe estas histórias. Elaborando um contato mais afetivo com estas mulheres a partir de suas falas internas. É fantástico ver mais mulheres profissionais do sexo ou não, se perceberem ali, naquele lugar de fala. O mais recompensador até agora foi ver os olhos destas mulheres, marejados por estes discursos disruptivos. Poder mostrar prostitutas através de seus “estados e amor”, não mudou só a minha vida, foi a forma que consegui expressar este ponto de vista contemporâneo dos desejos e sensibilidades femininos. Esta é a arte de se fazer documentário: trabalhar o músculo híbrido da etno-ficção a partir das memórias coletivas.


O curta é ainda inédito para o grande público e foi liberado para visualização online até 18 de janeiro de 2016 pela diretora e toda a técnica que participou do filme na busca por ampliar o tema da prostituição a partir do ponto de vista do amor destas mulheres.


FICHA TÉCNICA
Filme: “N”. De Vanessa
Gênero: Documentário Reflexivo
Duração: 14:09 Ano de Produção: 2015
Diretora: Maria Carmencita Job
Roteirista: Maria Carmencita Job
Atriz Principal: “Nicole”
Direção de Fotografia: Maria Fernanda Kern da Costa
Direção de Arte: Maria Fernanda Kern da Costa
Montagem: Maria Fernanda Kern da Costa
Som direto: Isabel Cardoso
Idade Indicativa: 14 anos

I Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde, por Tiago Henrique

Há alguns anos, no campo da cultura, o cuidado com o patrimônio  ferroviário ganhou evidência. Após a desativação de muitas ferrovias no Brasil devido, entre outras coisas, às dívidas contraídas pela Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima – RFFSA e ao desequilíbrio técnico-operacional decorrente da degradação da infraestrutura, entre os anos de 1980 e 1992, muitas ferrovias foram privatizadas e abandonadas.

https://www.youtube.com/watch?v=p_4WPagxxfI

Em Arcoverde, Sertão do Moxotó, Pernambuco, não foi diferente. A história da cidade perpassa também a da Estação Ferroviária Barão de Rio Branco. A estrada de ferro teria, segundo a prefeitura, intensificado o comércio e possibilitado a elevação da cidade à categoria de município. A Estação foi inaugurada em 1912 e desativada por volta da década de 1980.

Após anos de abandono, em 17 de novembro de 2001, um grupo de artistas pulou, pela primeira vez, os muros da estação e desde então ocuparam o local com o objetivo de realizar atividades culturais. Em 2004 a estação foi certificada pelo governo federal como o primeiro ponto de cultura do Brasil. Passou a ser conhecida como Estação da Cultura e abriga diversos grupos culturais da cidade.

1º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_2015601º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_201548

Para comemorar o aniversário da Estação e homenagear o nascimento do mestre Jimmy Web, ainda vivo e brincante de boi, Everaldo Marques, presidente da Associação de Bois e Similares de Arcoverde e coordenador do grupo Boi Maracatu, resolveu promover um grande encontro com os grupos de Bois e Ursos de cada comunidade.   

1º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_2015191º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_201521

Everaldo me conta que essa é uma tentativa de engajar diversos grupos nos movimentos culturais de Arcoverde.La Ursa é uma manifestação que vem perdendo força: um conjunto de dois homens; o “urso”, isto é, um homem vestido de urso; e o outro, o “domador”, também chamado “O Italiano” e “O Comandante”. No Brasil, essa foi um brincadeira trazida por italianos e espanhóis e é frequentemente encenada com uma terceira figura, “O Caçador”, um tipo de folião ou palhaço, que conduz uma velha espingarda e dá tiros cada vez que parece o “urso” tenta escapar.

1º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_2015451º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_201549

O 1º Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde foi uma grande farra, na rua, “no meio da zuada e na contra mão”, como canta Mestre Ambrósio.

1º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_20151051º_Encontro de Bois e Ursos de Arcoverde_nov_201591


Por Tiago Henrique, fotógrafo e andarilho, colaborador da Nossa Rede. Fotos: Tiago Henrique.

Por que você fotografa? Por Fábio Nascimento

Fábio Nascimento é mineiro e reside em São Paulo, mas você o encontra mesmo é pelo Brasil e pelo mundo contando histórias importantes através da fotografia. Sempre questionador, trabalhar com Fábio é treinar um olho crítico e atento. É inspirador saber de suas andanças e investigações sobre temas que abordam, em sua maioria, questões de minorias e sócio-ambientais. Em tempos de crimes ambientais tão graves acontecendo no Brasil, fico feliz em convidar Fábio para compartilhar um pouco sobre a importância de seu fazer:

Andarilha_Fabio Nascimento_07Tempestade_08“Antes da Tempestade” Greenpeace Brasil Pará, Brasil, 2015.

Como é fazer reportagens para, por exemplo, a National Geographic, Green Peace, Unesco/Museu do Índio?

Te escrevo agora tendo voltado de uma série de viagens, documentando situações diversas, como a resistência do povo Munduruku contra o projeto de hidrelétricas no rio Tapajós, ou os índios Ka’apor se organizando de maneira autônoma para defender seu território de invasores madeireiros, ou ainda um web-documentário sobre energia solar.

Bem, fazer essas reportagens, antes de mais nada, está muito ligado ao que me interessa, às pessoas, lugares e costumes com quais me importo. Pouco a pouco tenho conseguido trazer isso para ocupar uma parte maior do que faço como trabalho, e é uma sincera satisfação contar essas histórias que são pouco ouvidas.

Uma parte importante disso vem de um interesse cotidiano de me informar, ter conversas e pesquisar sobre aquilo que interessa, e certas ideias viram projetos, em forma de reportagem, filme, alguma coisa que dê visibilidade ao assunto; muitas vezes esses assuntos vem até você, se tornam novos interesses, se somam aos outros.

Provavelmente, a parte mais cativante seja estar em campo, com essas pessoas, nestes lugares, e tentar de alguma forma contar aquela história, aquilo que querem mostrar e dizer para outras pessoas. Provavelmente, não. Sem dúvidas é o mais vivo e apaixonante de fazer.

Cada projeto tem seu jeito de terminar, como as reportagens na Amazônia devem ser vistas logo, pois a situação pede assim. Outros, como o filme “Nossa Pintura”, são mais longos, precisam de mais tempo em todas as etapas. Mas acredito que, no fim, todas elas tem o mesmo objetivo de dar visibilidade à certas vozes daquelas pouco ouvidas.

Andarilha_Fabio Nascimento_01unnamed (1) unnamed“Nossa Pintura”, Pará, Brasil

Qual reportagem, até então, foi a que mais te marcou? Por que?

Eu diria que duas me marcaram mais, um quando fui ao Benin filmar os rituais animistas, fazendo o documentário “Iya Shango”, que também virou exposição, e outra quando fui à aldeia Moxkarakô, dos Kayapó, onde fiz o “Nossa Pintura”, junto com o Thiago Oliveira.

iya-shango-21 “Iya Shango” Kétou, Benin, 2009

No Benin a intensidade de tudo foi o mais marcante, da hostilidade do clima aos rituais, tudo se apresentava pelos extremos. Ali ficamos com uma pequena equipe filmando por mais de um mês, entre momentos da mais longa espera aos tambores ensurdecedores nas madrugadas, e tudo era novo, a maneira de filmar, a luz, o cansaço.

Quando fui à Amazônia pela primeira vez tive o privilégio de estar fazendo um projeto junto aos Kayapó, com o inestimável convite do Thiago Oliveira e Museu do Índio, quando fizemos o “Nossa Pintura”. Me sentia honrado em estar sendo recebido por um grupo que já admirava, e mais ainda por poder ter contado um pouco da história deles, ter mostrado algo tão valioso da cultura Mebengokrê-Kayapó, como é a pintura corporal.

Conte um pouco sobre o processo de fazer a exposição/documentário “nossa Pintura”. O que te levou a fazer esse registro?

Como parte do projeto Kukradjá Nhipêjx, do Museu do Índio, fui convidado pelo antropólogo e fotógrafo Thiago Oliveira, para documentar uma oficina que aconteceria na aldeia Moxkarakô, como parte de um projeto de salvaguarda de patrimônio imaterial. Durante o processo de produção e organização da viagem, junto com Axuapé, Bepunu e Pawire Kayapó, bolsistas do projeto, começamos a nos dar conta que seria possível documentar além da oficina de pintura corporal, que poderíamos filmar também este processo de pintura, desde a preparação do jenipapo que usam como tinta, até padrões gráficos que eles se pintam.

O que foi além das nossas expectativas foi o fato de, ao filmarmos tudo isso, tendo conversas e os acompanhado em vários momentos, nós acabamos por filmar também muitas reflexões que o povo tem à respeito do contato com os brancos, sobre a manutenção e transmissão da sua cultura.

Por fim acabamos construindo duas maneiras de mostrar este trabalho, no documentário e na exposição. Além disso o Thiago acaba de lançar um belo livro de fotografias dedicado ao tema, feito em parceria com o antropólogo Andre Demarchi, chamado “Metoro Kukradja”.

Tapajos_site_06 (1)Andarilha_Fabio Nascimento_06“Tapajós: a luta pelo rio da vida” Greenpeace Brasil Pará, Brasil, 2014

Por que você fotografa?

Diria que meu interesse começa nas pessoas, as histórias delas. Com o tempo venho descobrindo que a fotografia é um jeito de contar histórias que eu gosto, que acho que posso contribuir de alguma forma. Percebo que as pessoas, algumas vezes, se sensibilizam com alguma situação que chega até elas por uma fotografia. Filmar também é uma boa ferramenta, que tenho feito bastante, e pra certas histórias funciona muito bem.

 

Tempestade_03Tempestade_18“Antes da Tempestade” Greenpeace Brasil Pará, Brasil, 2015.


Para saber mais: www.fabio-nascimento.com