Tenho certeza que a hora que eu encontrar Tiago Silva, a gente vai se perder contando histórias. É ele quem dá linha à prosa boa sobre fotografia e conta muito sobre sua trajetória de vida e como isso influencia diretamente o seu trabalho. Um dos membros do recém criado Coletivo Nação, Tiago largou São Paulo pelas raízes pernambucanas e relata aqui um pouco de seus passos:
• O que é o Coletivo Nação?
O Coletivo Nação é um projeto que eu e mais 12 amigos de distintas regiões do país começamos a desenvolver em Fevereiro deste ano, com o objetivo de criar relatórios visuais que destaquem as idiossincrasias do Brasil. Com uma abordagem que almeja ir além dos esteriótipos, das festas populares, da religiosidade, o que nós buscamos são momentos do cotidiano que identifiquem aspectos da identidade brasileira que, quando somadas, revelem a pluralidade do nosso país sem perder de vista as similaridades dos fazeres que nos identificam como Nação.
Esse pensamento é apoiado em diversos fatores, talvez o principal seja justamente a estereotipação da cultura regional brasileira, muitas vezes subsidiada por políticas culturais e de turismo que acabam prejudicando qualquer tentativa de conhecimento sério. A grande conseqüência disso é o preconceito cultural, uma conduta que vem se disseminando entre as mais diversas camadas sociais. Há sempre um suplemento -ou uma lacuna- que se interpõe quando se fala do Brasil – e da cultura brasileira – também em lugares surpreendentes, de onde se deveria esperar uma abordagem mais séria e mais documentada. Além da questão cultural, as agitações civis e políticas das grande captais também são pauta para o coletivo.
• O que te levou a fotografar Buíque?
Buíque é uma cidade muito curiosa. É meio agreste, meio sertão, reconhecida por ser a terra onde Graciliano Ramos aprendeu as primeiras palavras, terra do poeta Cyl Gallindo, membro da Academia Pernambucana de Letras, do grande Zé Bezerra, escultor fascinante e um dos artistas mais influentes do sertão, além do Parque Nacional do Vale do Catimbau e das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas, passa por um processo de mudanças sociais com a chegada da tecnologia que deixa qualquer faculdade de sociologia e antropologia no chinelo.
Porém, como a maioria das cidades do interior do nordeste é pobre, politicamente atrasada, possui um dos piores índices de desenvolvimento humano do país e taxas de evasão escolar e analfabetismo exorbitantes. Moro aqui há um ano e meio e minha vinda para cá está inerentemente ligada à parte da minha história de vida. Na infância morei bem próximo dos meus avós maternos. Ambos eram nordestinos, minha avó de Recife e meu avô da Paraíba. Na verdade eu morava numa casa em cima da deles, na Zona Leste de São Paulo. Havia um choque de costumes quando eu visitava a família do meu pai que se dividem entre mineiros e paulistas. Nada extremo, mas desde criança observava essas “diferenças”.
Como morava praticamente na casa dos meus avós maternos, minha infância foi regada de histórias, palavras e sotaques do nordeste. Já no início da adolescencia minha família se mudou para um conjunto habitacional em Itaquera, também na Zona Leste e foi lá que eu conheci Márcia, com 16 anos. Márcia nasceu numa cidade chamada Pesqueira e foi criada em Buíque, onde seus pais moram, ela estava em São Paulo para ficar com a irmã mais velha que tinha se divorciado. Atualmente Márcia é minha esposa e mãe da minha filha, Ana. No começo, passávamos horas conversando sobre o nordeste, as histórias que me contava, muitas vezes, davam sentido para as que eu ouvia na casa dos meus avós. No entanto, vir para o nordeste ou ser fotógrafo nem passava pela minha cabeça.
Foi no fim da adolescência que a fotografia entrou na minha vida. Eu tinha uma guitarra velha que eu adorava e levava para um grande amigo, Sávio Vacarelli, concertar toda vez que dava um problema. Sávio é o tipo de pessoa que todo adolescente quer ter por perto, a oficina dele era (e é até hoje) repleta de vinis e cd’s de rock, jazz e blues, tem uma coleção incrível de filmes e livros e uma barba enorme. Mas o que me chamava a atenção era a quantidade infindável de câmeras fotográficas de todo tipo. Ele trabalhou fazendo “Still” para Mario Carneiro! Apesar de conhecê-lo desde os 15 anos, só pedi uma câmera emprestada aos 20, para fotografar minha filha. Desde então eu larguei meu emprego na área de Call Center e fui ser assistente de fotografia, trabalhei para fotógrafos como Renata Castello Branco e Maurício Nahas.
A ideia de ir para o nordeste se solidificou há dois anos quando conheci trabalhadores que iam e vinham de Pernambuco para São Paulo em transportes clandestinos que partiam do Brás, no centro de São Paulo e paravam em Águas Belas no interior de Pernambuco. A curiosidade para conhece-los melhor era imensa e eu já sentia as dificuldades de morar em São Paulo, com uma filha mais aluguel e contas sem fim. Então, resolvi me arriscar, largar tudo e partir para materializar todas as historias que ouvia, de criança à vida adulta, sobre o nordeste e me entregar de vez para a fotografia. Tem dado certo até agora! Atualmente a agência Rover Images tem se interessado muito pelas pautas que crio e me incentivado a continuar fotografando Buíque e outras cidades que vou conhecendo em minhas caminhadas pelo nordeste.
• O que é o Projeto Imagem Latente?
O projeto Imagem Latente foi uma das primeiras coisas que comecei aqui. A idéia do projeto “Imagem Latente: Fotografo, logo existo” nasceu após minha mudança para cidade. Ao me deparar com a grande quantidade de crianças trabalhando nos comércios e construções civis, resolvi pesquisar sobre o desenvolvimento humano da cidade e da educação. Pude constatar que o número de crianças que abandona a escola na virada dos 14 para os 15 anos de idade, prazo de conclusão do ensino fundamental, é absurdo e que mais da metade desses alunos se vêem no dever de trabalhar para complementar a renda de suas famílias. Cheguei a conclusão que, mais do que somente retratá-los devia pensar em metodologias que realmente tivessem como foco suas vozes, olhares, experiências e pontos de vista alem de oferecer uma oportunidade de mudança desse quadro. Então resolvi ensiná-los a fotografar.
O projeto consiste na realização de oficinas com intuito de ensinar crianças da cidade, os princípios básicos da fotografia. O objetivo de cada oficina é a excelência artística, a transformação positiva e o suporte contínuo para as crianças. O projeto pretende além de criar um ambiente em que cada criança aprenda e descubra sua própria criatividade, aumentando, concomitantemente, sua auto-estima, proporcionar uma estrutura para disciplinar as crianças, incentivando-as a serem livres para explorar o seu mundo revelando a “imagem latente” da sociedade em que vivem e que, até então, está presente em seu imaginário. Uma série de reflexões acabam surgindo sobre a escola, a vida cotidiana, o trabalho, etc acabam surgindo.
Atualmente o projeto passa por dificuldades, pois temos pouco material para as oficinas, me refiro aos filmes fotográficos e a revelação dos mesmos. Boa parte das câmeras foram doadas de outros estados, mas os filmes, o pouco que temos, eu mesmo compro e mando trazer de Recife, o único lugar que consigo filmes 35mm a um preço justo. As fotos das crianças ainda não estão ampliadas, apenas na folha de contato, pretendo ampliá-las em São Paulo em breve.
• Por que você fotografa?
Acho que deu para notar que a fotografia está muito ligada a minha vida. Minha mãe fotografava muito minha infância e dos meus irmãos. O gosto de documentar talvez venha daí também. Eu fotografo para dar sentido a minha existência e enriquecer quem está a minha volta. Com a fotografia eu educo minha filha, eu me comunico, aproximo pessoas, dou voz a quem eu fotografo. Eu reflito. E acho que esse é o ponto, a fotografia me faz mais eficiente como homem e cidadão. Não vejo minha vida de outra forma senão atrás de uma câmera.
Para saber mais: tiagohenrique.46graus.com