Fiquei curiosa para conhecer de perto Belém do Pará ao ver um documentário sobre a indústria fonográfica e o tecnobrega chamado Good Copy, Bad Copy, com o jornalista Ronaldo Lemos. A estreita relação da cidade com a música é audível a qualquer passante que esteja atento aos bikesons, às aparelhagens e às guitarradas.
Foi nesse encantamento pelo som e pelo Pará que me peguei assistindo repetidas vezes ao Sonoro Diamante Negro, um vídeo que fazia parte da exposição “A Arte da Lembrança”, com curadoria de Diógenes Moura, no Itaú Cultural. O projeto tratava-se de uma inciativa de preservação de memórias de Suely Nascimento para reconstruir a vida de uma das primeiras grandes aparelhagens de Belém.
O que me fisgou no trabalho da jornalista e fotógrafa paraense foi o fato que o dono do Sonoro era seu pai. Até então, eu sabia que o Andarilha seria sobre quem vive o percurso e busca inspirações em suas andanças cotidianas. Mas só ali, embalada pela música dos Bailes da Saudade, entendi que, se somos trajetória, é essencial falarmos também das heranças. E assim, nasceu esta plataforma, que resgata os sotaques e as histórias herdadas como referência para criar.
Um ano de projeto Andarilha teve esse presente, estar em Belém do Pará e em encontro as histórias de Suely:
“Eu e minhas irmãs vivemos a infância e a adolescência meio à parte do trabalho do nosso pai e do sonoro dele. Era um mistério! Poucas informações chegavam até nós. Era um trabalho de homens, da noite. Nós éramos garotas”, conta.
Sebastião Nascimento nasceu no município paraense de Capanema, no final da década de 1920. Anos depois, sua família transferiu-se para Belém e passaram a morar no bairro Marambaia. Teve 5 filhas, para quem ele sempre dizia que trabalhava com o comércio.
Suely foi a única que, através da fotografia, passou a acompanhar e registrar o pai no trabalho:
“O Sonoro chegou a cobrir apresentações musicais de cantores como Jerry Adriani, Reginaldo Rossi e Beto Barbosa. E a tocar, inclusive, no Teatro da Paz, nos anos 1950. Está na memória de antigos festeiros e de pessoas que frequentavam as festas do Diamante Negro. Decidi, então, fazer uma documentação dele”.
O processo durou cerca de 7 anos e a aceitação do pai foi aos poucos. Primeiro, ele escolheu as sedes em que levaria a filha junto de ônibus. No começo, ela cobria apenas o dia de montagem da aparelhagem, que era guardada em um local e transportada de caminhão para algumas das sedes. Só depois, ela passou a ir a noite e frequentar os bailes através das suas lentes.
“Eu não gostava de flash a noite, então, decidi usar filmes com ASA muito alta. Na época, o amigo Alberto Bitar, me ajudou a fazer uma coletânea dos áudios e fotos em vídeo. Inscrevemos para o edital do Instituto de Artes Pará e ganhamos. No dia da abertura da exposição, meu pai tocou para todos dançarem”.
A aparelhagem como instituição no Pará teve várias fases. Quando foi criado o sonoro de seu pai, ele era formado por um auto falante, uma tuíta e um projetor, e era carregado em um desses carrinhos de praça. Era um som móvel levado para festas de casamento e celebrações de 15 anos. Isso foi em dezembro de 1950, quando, à moda da época, o sonoro ainda era batizado com nome de santo e se chamava São Sebastião, em homenagem ao dono.
“O proprietário da aparelhagem tinha que trocar seu equipamento todo ano, por conta das chuvas, buracos de estradas, etc. E nestas novas aquisições, as aparelhagens foram ficando cada vez maiores e mais caras. Como um apaixonado por música, meu pai tinha uma coleção vasta de vinis. Ele decidiu, então, não concorrer com as grandes aparelhagens, mas sim fazer o Baile da Saudade”.
Aos 50 anos de existência, nos anos 2000, era o Diamante Negro o sonoro mais antigo de Belém em atividade. O diferencial era mesmo a qualidade do som nos Bailes, feito para os casais cativos dançarem antigas canções que falavam de dor de cotovelo, de tristeza, de amor…
As imagens em movimento das festas foram registradas pela filha e transformadas em vídeo, site, exposição, e também em um livro especial. Entre as curiosas frases de Sebastião sobre o jeito agarradinho de se dançar da época, as fotografias de Suely dão ritmo a salvaguarda da história do baile, da aparelhagem e de Belém do Pará.
“Dias antes do lançamento do livro, recebemos os exemplares em casa e meu pai faleceu. Foi um choque e um momento muito delicado para a nossa família. Perguntei a minha mãe se ela queria lançá-lo ainda assim e ela disse que nada o teria feito mais feliz. E assim foi: lançamos”.
Às vezes eu me pergunto se a minha avó, a inspiração para essa caminhada chamada Andarilha, estaria feliz com esses encontros que o projeto me proporciona. E, ao ouvir ecoar na voz doce de Suely, o quanto seu pai ainda vive na sua fotografia, tive minha resposta. Talvez nada faça a gente mais feliz que seguir os passos em homenagem a quem nos incentivou a dar os primeiros – como em uma dança embalada por discos de infinitas rotações.
Obrigada Suely Nascimento, Paula Corrêa, Éder Oliveira, Suelen Silva e Michele Escoura. Para saber mais: www.sonorodiamantenegro.com.br
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