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“Eu nasci para viver em movimento”, Marizilda Cruppe

Marizilda Cruppe é técnica em mecânica, abandonou o curso de engenharia para ser piloto de avião até descobrir sua vocação no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo durante 4 anos até decidir migrar para a fotografia documental em 2011. Seu interesse por temas relacionados aos direitos humanos e civis, desigualdade social, doenças negligenciadas e meio-ambiente a fazem viajar pelo Brasil e pelo mundo trabalhando para  organizações como Greenpeace, Comitê Internacional da Cruz Vermelha e Médicos sem Fronteiras.

Soube de seu trabalho pela série mais recente de fotos de celular que ela faz das suas novas moradas. É que Marizilda não tem casa fixa, ela vai aonde a fotografia a leva. Andarilha no sentido literal da palavra, sua fala me encanta quando ela assume que nasceu mesmo para estar em movimento pois essa é a forma que ela consegue estar sempre presente:

Mato Grosso State occupies an area in western Brazil largest than Texas. According to the Conab (Companhia Nacional de Abastecimento - National Supply Company) latest data released last March, Mato Grosso can produce a harvest of 48.2 million tons of grain in the 2014/2015 crop in an area of 13.2 million hectares, in addition to the production of cotton, poultry, pigs and cattle. The Chinese are interested in investing in Brazil and build a railroad to connect Mato Grosso to Rondonia, Acre and Peru, reaching the Pacific Ocean, facilitating the flow of local production. Last June, a group of 21 Chinese formed a delegation, including Ambassador to Brazil, Li Jinzhang, businessmen and bankers. The group's mission was to make a road trip of 1500 kilometers between Porto Velho and Cuiabá, where it will pass a stretch of transoceanic railroad. The trip included a visit to Lucas do Rio Verde, a 70,000 inhabitants city in the margins of the road BR-163. In this photo, fans of Luverdense, the football team of Lucas do Rio Verde watch a match of the second league of the Brazilian Soccer Championship in the city stadium. Photo Marizilda Cruppe. Assignment ID 30177200AA: De onde surgiu a vontade de ser fotojornalista?

M: Eu acho que o fotojornalismo sempre esteve no meu sangue. Em um período pré internet, morando numa cidade (Nova Iguaçu) sem museus, boas livrarias e até boas bancas de jornal, sem nenhum parente ou amigo da família jornalista, era difícil ter acesso ao fotojornalismo.

Quando eu tinha 18 anos, eu e o meu namorado na época, economizamos dinheiro um tempão para comprarmos um aeromodelo radio controlado. Nós dois éramos Técnicos em Mecânica, trabalhávamos desde adolescentes e estudávamos Engenharia. Antes disso eu já tinha economizado mais tempo ainda pra comprar minha primeira câmera, uma Pentax MX usada, que eu carregava comigo pra todo lado. Um dia, o nosso avião caiu e eu fotografei a historinha do acidente aéreo em vez de cumprir o papel de aeromodelista, recolher os destroços e entender porque nosso amigo o havia derrubado.

Em outra ocasião, quando eu já tinha trancado a faculdade pra tentar ser piloto, eu estava para decolar com meu instrutor quando o avião que decolou antes de mim caiu durante a decolagem. Eu saí do avião e corri para o local do acidente. Um outro instrutor me deteve no meio do caminho e pediu para eu cuidar das mulheres dos pilotos que tinham presenciado o acidente. Eu era a única mulher entre alunos e instrutores e coube a mim consolá-las, embora eu não estivesse muito apta para a responsabilidade que ganhei unicamente por ser mulher.

Felizmente, eles não morreram. Ou seja, eu sempre tive o instinto de reagir rápido e correr pra notícia. Ao longo do tempo, eu migrei da descrição do fato para o entendimento do fato. Hoje eu prefiro contar menos histórias e me dedicar mais tempo a elas. Mesmo que sejam historinhas de um dia, não quero mais fotografar olhando pro relógio porque tenho que sair correndo pra outra pauta.

foto_12foto_09foto_13Registros de outubro de 2014 até dezembro de 2015 da família Berman-Rincon

A: Durante a sua trajetória, qual história pelo Brasil mais te marcou ao cobrir?

M: Muitas histórias me marcaram, seja profissionalmente, seja pessoalmente. Lembro de uma foto que fiz em Marabá, de uma vítima de escalpelamento causado pelo eixo do motor de uma embarcação. Era meu aniversário e a mulher que fotografei tinha uma história de vida trágica e muitas sequelas físicas do acidente. Ela tinha a minha idade e uma serenidade no olhar e no discurso que eu carrego comigo até hoje. Ela não sentia revolta, nem mágoa, nem rancor. Amava a vida. Ela mexeu muito comigo.

Outra história que cruzou a fronteira do profissional para o pessoal é a da família Berman-Rincon, que acompanho há 5 anos. Carla e Cinthia estão juntas há 15 anos e desde que as acompanho tiveram dois filhos, um casal. Fotografei o parto dos dois. Estive presente em tantos momentos ao longo desses anos que acabamos nos tornando amigas. Ilan e Emilia já se acostumaram comigo e com a minha câmera e eu já me entitulei Fotobiógrafa da família que é de uma generosidade imensa. Quando estou no Rio é a casa onde passo mais tempo. É um prazer estar com eles. Este ano foi intenso para as meninas que lidaram com a chegada da Emilia e o tratamento da Carla. O amor delas é tão forte, tão bonito que a impressão que dá é que cresceu ainda mais depois de passarem pelo câncer. Elas não tem ideia do quanto aprendo com elas.

Mais recentemente, durante uma história sobre Emergências, eu fotografei o atendimento de uma idosa que não resistiu aos ferimentos causados pelo atropelamento e faleceu durante a cirurgia. Os médicos saíram para dar a notícia para a filha, com quem eu já havia conversado e estava sozinha no corredor do hospital. Fiquei distante, pois era um momento íntimo demais. Quando ela recebeu a notícia colocou um casaco no rosto para segurar o choro. Foi meu único clique. Não sei se ela percebeu minha presença, mesmo eu estando distante, ou se olhou para os lados em busca de apoio. Quando ela me viu chorou muito. Segui até onde estava, me sentei ao seu lado e ela me abraçou e chorou no meu ombro. Fiquei com ela até a família chegar.

Screen Shot 2015-12-11 at 6.14.27 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.14.47 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.46 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.02 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.27 PMScreen Shot 2015-12-11 at 6.15.16 PMEnsaio “Cruzada São Sebastião”, por Marizilda Cruppe.

A: O que é o ensaio Cruzada São Sebastião?

M: A Cruzada São Sebastião é um projeto de habitação idealizado pelo arcebispo Dom Helder Câmara para abrigar moradores de uma favela da Zona Sul do Rio. Era para ser um projeto de inclusão social, mas os moradores da Cruzada, em sua maioria negros, se sentem excluídos, pois a Cruzada fica no Leblon, o metro quadrado mais caro do Rio. Há muita pressão do mercado imobiliário e de uma parcela dos moradores do Leblon para que a Cruzada deixe de existir e os moradores sejam removidos dali.

Essa matéria foi proposta pelo jornalista Rogerio Daflon, quando trabalhávamos no Jornal O Globo, por conta dos 55 anos da Cruzada. Nos dedicamos à história, fomos ao local algumas vezes, até mesmo fora dos nossos horários de trabalho, pois queríamos mostrar os moradores de perto, dignos como são. Precisávamos de tempo – coisa rara em jornais – para nos aproximarmos, pois os moradores da Cruzada, comumente retratados de forma discriminatória, eram avessos a jornalistas. Com razão, né?

A: Você decidiu não ter morada fixa e caminhar por onde a fotografia te leva. Por que?

M: Vejo esse movimento mais como uma consequência das escolhas que fiz ao longo da vida do que como um ponto de partida. Não ter morada é um ponto de chegada. Minha geração foi criada para ter raízes. Eu até tentei. Durante metade da minha existência vivi em conflito com este modelo da estabilidade. Passei pela fase de transferir responsabilidades por não me encaixar, depois pela fase de me culpar porque eu só pensava em sair da gaiola enquanto minha geração ia se prendendo cada vez mais. Finalmente, estou em paz porque entendi que não é todo mundo que nasce pra seguir durante uma vida a profissão que escolheu quando adolescente; não é todo mundo que nasce para se aposentar como celetista; não é todo mundo que nasce pra casar e ter filhos. Eu nasci pra viver em movimento. Então, não ter endereço fixo, embora tenha sido uma decisão repentina, foi desenhada ao longo dos anos, mesmo que inconscientemente.

Imperatriz, MA_3965Formoso, MG_0417Chapada Gaúcha, MG_0051Parintins, AM_3015Série “Onde a fotografia me leva”, por Marizilda Cruppe

A: Como está sendo essa trajetória?

M: Tem sido muito interessante. Um exercício diário de desapego, de ajuste, de observação do entorno e de mim mesma. Não tem como fugir do palavrório cliché, mas é isso. Tô gostando de cada dificuldade, de cada conquista, de cada “certeza” que deixo pelo caminho. Não ter morada significa viver o momento presente. Minha mente é inquieta demais e não consegui chegar a viver o hoje através da meditação. Sem endereço fixo, sem um projeto formal, a não ser seguir a Fotografia, me fez sair da zona de conforto e viver um dia de cada vez.

A: Para você, o que é “morada”?

M: Morada é onde, de alguma forma, eu me sinto parte. Seja como testemunha com a minha câmera, seja por compartilhar uma emoção, um sentimento, uma causa. Me sinto em casa em muitos lugares, sozinha ou acompanhada, por estímulos externos ou internos. Minha morada sou eu mesma e tenho tido a oportunidade de dar uma boa arrumada. Casa é assim mesmo, tem que cuidar sempre.


Marizilda Cruppe  fundou o coletivo de fotógrafas EVE Photographers; foi membro do júri “Images to Stop Tuberculosis Photo Contest”, “Estação Imagem Mora”, em Portugal e “World Press Photo”, em Amsterdã, por duas vezes. Na área de educação foi instrutora em workshops de fotografia documental e narrativas multimídia para o World Press Photo, em Angola, e para a Open Society Foundations, Tufts University e Stop TB Partnership, no Rio de Janeiro. Foi palestrante convidada na última edição do Festival de Fotografia de Tiradentes e colaborou para publicações como New York Times, GQ, Editora Trip e o recém-lançado website Projeto Colabora.

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