Em uma festa do Boi no Morro do Querosene em São Paulo, uma amiga me disse: “vou ali brincar” e seguiu para a roda onde todos pulavam, dançavam, cantavam. Ouvir aquele verbo ser conjugado por adultos em territórios tão urbanos me causou um certo estranhamento. Estariam os corpos ocupantes das grandes cidades restritos aos shoppings e aos carros? Seriam eles “brincantes” apenas no carnaval e em algumas festas pontuais?
Foi na fala do historiador Guto Borges sobre o carnaval de rua de Belo Horizonte que percebi: há muito que este corpo quer voltar a habitar às várias mãos, à pé, de bicicleta, de salto, de manhã ou à noite, na cidade, nas ruas, nas praças e, de preferência, de catraca livre. Afinal, o brincante é muito mais que um folião. Ele é o autor do não confinamento de seus desejos e manifestações — expressão criativa de transformações importantes.
Mas o que significa ser um brincante hoje? Foi então que começamos nossas pesquisas por aqui e com uma entrevista com o mineiro que é um dos agentes e brincantes do carnaval de rua de BH:
Como foi a sua infância? Do que você brincava?
Em alguma medida, minha infância foi uma infância típica das cidades grandes nos anos 1980. Com pais separados eu vivi um tanto com meu pai em um apartamento no Bairro São Lucas e um outro tanto com minha mãe, que por sua vez vivia em uma pequena casa no bairro Cruzeiro. E, se com meu pai eu experimentei a vida de apartamento, videogames, televisão, shopping-centers, na casa da minha mãe houve toda aquela vida de casa e quintal.
Lembro especialmente de periquitos, o pássaro preto, os coelhos, cachorros, gatos. Eram algumas árvores (lembro da mangueira, do limoeiro e do pé de romã). Tínhamos até um balanço na mangueira, subíamos – eu e meu irmão – para comer manga no pé, juntávamos as folhas do quintal numa montanha e pulávamos do balanço até sumirmos lá dentro. Por haver espaço minha mãe organizava uma festa junina que lá em casa, onde havia teatro de bonecos, música, comida e fogueiras. Dos espaços públicos lembro de brincar de pipa na Praça do Papa.
As viagens de férias para as cidades natais dos meus pais guardavam ainda características bem distintas, mas importantes. Se na nortista Salinas (à época acessível apenas por longuíssimas viagens em estradas de terra), cidade natal do meu pai, a diversão era o futebol de clube, os passeios – em vezes corridas – de cavalo, a vida nos currais, as pescarias, as corridas pelas ruas, diversões, tretas, pequenas brigas, correrias que se passavam na pracinha.
Guto e o irmão à esquerda como pequenos foliões. Foto: acervo pessoal.
Já da católica São João Del Rei eu guardo algumas brincadeiras na rua da casa da minha avó (tais como descer com papelão algumas encostas de grama ou nadar nas enxurradas), mas principalmente as primeiras brincadeiras de carnaval. Alguns blocos infantis desfilavam na avenida da cidade (em especial um chamado Disneylândia). Fantasiávamos e brincávamos pelas ruas.
A cidade tinha já naquela época uma longa história de carnaval com suas figuras típicas locais, lembro, por exemplo, do Quati, um homem de estatura muito baixa que se vestia com uma enorme cabeça e um corpo minúsculo, ou os caveiras, um bloco de homens vestido de mortos, com ossos pendurados no lugar das mãos, que por sua vez aterrorizou a minha infância.
Bloco Tico Tico em 2012. Foto: Flora Rajão.
Como historiador, de onde surgiu seu interesse pelo Carnaval?
“Como historiador” eu posso dizer que comecei a me interessar pelo carnaval brincando no carnaval. É difícil distinguir até onde vai “um historiador”, num sentido formal do termo. Minha visão de mundo, meu modo de operar, de ver as coisas talvez fosse marcado por um certo apreço à histórias antes mesmo de optar por seguir esse caminho, digamos, profissional.
Mas é seguro que essa história carnavalesca começou quando, por um belíssimo acaso, fui passar um carnaval com a namorada à época e alguns amigos no Rio de Janeiro, ainda no início dos anos 2000 (2003 talvez) e uma amiga carioca que nos recebeu nos contou de uma novidade à época, o renascimento de alguns Bloco de Rua (quando ainda não havia, ou haviam poucos blocos de rua no centro do Rio) e que se chamava Boitatá, hoje um dois mais famosos por lá ainda hoje. Era um dos primeiros anos (senão o primeiro) do Boitatá.
Eu já estava na faculdade, me formava, por assim dizer, como historiador, e aquele desfile pelas ruas do centro histórico do Rio deve ter sido de fato uma marcante experiência para mim, afinal aquilo parecia sobrepor ali um sem-número de camadas de outras épocas, todas elas incrustadas num hoje muito potente.
• Por que criar blocos de carnaval e ocupar as ruas de BH?
Eu comentava outro dia que em alguma medida quando o (arquiteto e folião) Roberto Andrés me convidou para ser o “responsável pela banda” do primeiro Tico Tico em 2009 – convite esse que não era fortuito, afinal é importante dizer, naquela altura eu já atuava como historiador, mas também guitarrista da banda Dead Lover’s Twisted Heart em Belo Horizonte – , pesou sim aquele dia alguns anos antes, afinal uma opção foi feita ali na hora, ao escolher, ainda que inconscientemente, tocar marchas antigas, desfilar aos moldes dos blocos-sujos antigos, ao retomar essa brincadeira de carnaval de forma tão livre, quase infantil pelas ruas.
De alguma forma essa festa citava sim, um carnaval do passado, mas é importante dizer, nunca foi uma festa saudosista. Mas sim uma festa incrustada – como uma boa brincadeira – nos anseios do presente. Ou seja, ao mesmo tempo que eram citadas aqui formas, moldes, canções de outros tempos, era antes de tudo uma invenção do presente que estava em jogo. E está até hoje.
Bloco Praia da Estação, em 2012. Foto: Flora Rajão.
Bem, e lá se vão alguns anos já desde a criação destes primeiros blocos dessa nova safra em BH. De alguma forma o porque disso se consolidou ao longo destes últimos anos. Digo, muito desse significado foi sendo construído a medida que a festa foi sendo feita. E muito disso gira em torno de uma preocupação com essa cidade que eu descrevi rapidamente um pouco quando falo da minha infância em Belo Horizonte, afinal, tenho certeza que foi a de muitos outros também.
Uma cidade que de alguma forma fomos testemunhas do seu dilaceramento, que a fez ir perdendo durante os anos 1980 e 1990 – e que talvez nestes últimos anos tenha atingido o seu ápice mais dramático – muito de seu sentido de vida em comum.
Uma cidade que passou a acumular o sem número de mundos privados no entanto foi perdendo suas comunidades, e com elas suas festas, seus modos, trejeitos, foi perdendo seus espaços comuns, seus convívios. Sua vida de rua. Ia sendo (e segue sendo) relapsa com tantas geografias, territórios que se construíram ao longo da curta história da nossa cidade.
Ensaio do Bloco do Peixoto, 2014. Foto: Flora Rajão.
Ainda que não seja parte da minha experiência direta que eu descrevi acima, é dessa década (1980), por exemplo, o surgimento do Complexo Rodoviário da Lagoinha, um amontoado de viadutos que, para dizer o mínimo soterrou o ponto nevrálgico da memória boêmia e carnavalesca dessa cidade, a Praça Vaz de Melo num destes ímpetos rodoviaristas tardios. É dessa década, por exemplo, a remoção de diversas vilas e comunidades do plano urbano (o Pindura Saia, o Pau Comeu, a vila dos Marmiteiros). Talvez não seja em vão que data no final dessa década o início do arrefecimento do carnaval por aqui.
Para tentar responder sua pergunta, acho que os blocos são criados num ímpeto que procurava buscar uma outra forma de sociabilidade, ou, que renovasse a relações na nossa cidade. É curioso que talvez que essa reposta sobre um futuro nosso estivesse, de alguma forma, mascarada, nos esperando lá atrás, no passado. Era preciso dar as mãos a ela e era importante também seguir adiante.
Para além de uma reação imediata a um projeto de cidade que se rechaçava, o retorno dessas celebrações de rua que são os blocos são um importante exercício de imaginação futura de cidade, ou, ainda, da cidade que queremos. Ou, tenho certeza, da cidade que virá. As canções, marchas, afoxés compostos durante esses últimos anos pelos blocos são testemunha disso.
• Quem é Seu Alegria? Quais outros brincantes você conheceu neste reencontro com o carnaval pela cidade?
Apesar de não ser um tema muito constante nas conversas sobre o carnaval estas são histórias que eu guardo com muito carinho. A dos brincantes antigos que conheci em meio a festa, que sempre nos aparecem, quase como por evocação, no meio dos blocos.
Seu Alegria, brincante do bairro Lagoinha, em 2012. Fotos: Flora Rajão.
A história de como conhecemos o Seu Alegria integra uma história mais ampla que eu vou tentar contar aqui de forma breve: mais acima eu falei um pouco sobre a década de 1980 em Belo Horizonte, que, entre outras coisas, foi coroada com o atropelo da nossa história com a construção do Complexo Viário da Lagoinha, um golpe dado no bairro berço de tantas histórias da cidade. Falei ainda desse sentido um pouco exploratório que nosso carnaval acabou ganhando: nosso único plano era irmos fazendo nossos planos no caminho.
Foi assim que em 2012 fomos com o Tico Tico – nosso primeiro bloco itinerante inclusive – justamente à Lagoinha, celebrar, rememorar, reverenciar, talvez simbolicamente refundar a festa por aqui. Chegamos pelo bairro da Floresta e na ocasião fizemos carnaval até mesma cima dos túneis da Cristiano Machado. Fomos caminhando, recebendo mangueiradas e até uma garrafa de conhaque das casas que passávamos. Chegamos no Lagoinha justamente atravessando por sobre aqueles inóspitos viadutos de concreto, entrando no bairro numa espécie de cortejo repleto de crianças, fantasias e música.
A caminho do bairro Lagoinha, o bloco Tico Tico em 2012. Foto: Flora Rajão.
Espremida em meio a avenidas, a Lagoinha, depois de tudo que fizeram – ou deixaram de fazer – por lá, passou a ser povoada por uma série de problemas. Apesar do passado repleto de dias felizes o bairro ostenta hoje a imagem que a cidade lhe imprimiu: a do abandono. As ruas vazias, cobertas de fuligem dos carros, um certo medo. E foi fazendo festa nesse cenário que íamos encontramos, desenterrando as memórias do bairro.
Encontramos um portão que entramos com o bloco e demos em uma vila habitada quase apenas por senhores e senhoras. Todos saíram às ruas e acompanharam o cortejo, brincaram, certamente, como antigamente. Sabiam de cor a salteado todas as músicas, sabiam se divertir em público, sabiam brincar uns com os outros.
Foi aí que apareceu o Seu Alegria. Ele se apresentou e eu pedi para o bloco parar de tocar; ele, projetando sua voz por toda a vila, cantou uma música, “Adeus Lagoinha”, um samba já tradicional na cidade composto justamente por ocasião do fim da praça Vaz de Melo, que lamenta: “Adeus Lagoinha, estão levando o que resta de mim. Dizem que é força do progresso, um minuto eu peço para ver seu fim”.
Moradora do bairro Lagoinha em visita do bloco Tico Tico em 2012. Foto: Flora Rajão.
Da mesma forma que apareceu, desapareceu, deixando no ar essa que para mim é uma das músicas mais importantes já compostas na cidade, irmã talvez do samba do Mestre Conga “Lágrimas Sentidas” onde ele evoca a Pedreira Prado Lopes, bairro vizinho à Lagoinha, lugar onde nasceu a primeira escola da samba da cidade e marcado hoje também pelo mais triste abandono, a chamando de “rainha que já não tem coroa”: “esta saudosa pedreira já a nossa querida Mangueira, rola minha lágrima sentida, a falta que ela me faz na minha vida”.
Esse ano, 2016, um senhor do Bairro Nova Esperança acompanhou todo o desfile do bloco Filhos de Tcha Tcha, sorrindo, cantando ao lado do bloco. Ao final começou a tentar reger a jovem bateria ali mas percebi que ele o fazia em um ritmo muito mais lento do que o que se tocava àquela altura. E de fato, os sambas, as marchas e os ranchos antigos, até mesmo os sambas-enredo, eram puxado em um ritmo muito mais lento que hoje em dia. Entendi que ele talvez tivesse tido algum passado de puxador de samba e novamente chamei uma parada da bateria e ele pediu “posso fazer uma homenagem?” e puxou uma pequena canção exaltação ao lendário “Leões da Lagoinha”, talvez o mais antigo dos blocos de rua da cidade, talvez por ver ali uma herança direta sendo revivida.
• Para você, o que é “brincante”?
Acho que acabei passando por essa reposta em algum ponto até aqui. A maioria destes brincantes que apareceram e deixaram marcas como essas do Seu Alegria são anônimos, sequer vamos saber seus nomes. E são vários. Em geral muito espirituosos, professores dessa sabedoria das ruas, essa língua materna das cidades – ou de qualquer lugar – , de quem sabe jogar um jogo, sabe chegar, sair. E sabe dizer.
Acho que há um papel do brincante que é o de guardar algo consigo. Ser o portador de histórias, em geral histórias do corpo, da língua, dos modos. E é preciso saber transmitir isso. Evocá-las quando elas forem necessárias.
É uma presença importante em qualquer celebração comunitária, afinal, o brincante é um território de partilha, de encontro, de fazer elos, entre pessoas mas também entre lugares e tempos diferentes. A ideia da brincadeira passa por aí, por essa habilidade em pertencer a vários lugares, transitar, e assim ultrapassar algumas fronteiras.
Fotos de acervo pessoal de Guto Borges. Obrigada especial a Flora Rajão pelas fotos de registro do carnaval de rua de Belo Horizonte desde 2012.