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Emílio Domingos: do pai, herdou o olhar sem distinções

Quando eu ouvi falar na dança do passinho, fiquei hipnotizada. Eu já havia pesquisado sobre os passos do treme no Pará em meus estudos sobre aparelhagens por lá. Foi quando a batalha bombou e eu entrei em contato com o Emílio, diretor do documentário “a Batalha do Passinho”. Na primeira oportunidade no Rio, marcamos um papo para falar sobre o vício que é ver esses moleques dançarem.

Tudo começou em 2008. Emílio esbarrou em vídeos online do Passinho do Frevo, Passinho Foda e Passinho do Cidade Alta. Passou horas vendo tudo aquilo, sem saber nada sobre quem eram aqueles garotos que dançavam. Até que em 2011, em um evento sobre arte urbana chamado R.U.A, no SESC, ele encontrou os organizadores da Batalha que o convidaram para ser um dos jurados de uma competição. Emílio topou não julgar, mas sim registrar os quatro dias de dança.

No primeiro dia, foi mesmo só um começo. Tantas crianças dançavam o passinho nas apresentações que Emílio se pegou pensando sobre aquele jeito de mexer e se expressar através do corpo que parece tão natural do carioca, como se a meninada já tivesse nascido com aquela ginga. Quando conheceu a amizade de dois dançarinos do passinho, Gambá e Cebolinha, decidiu fazer do registro da Batalha, um filme. Só mesmo a dança e a vontade de duelar de baile em baile para criar uma sintonia entre duas pessoas de personalidades e de regiões tão diferentes.

Screen Shot 2015-06-13 at 10.26.56 PMPassinhoDanceOff03 PassinhoDanceOff02Imagens da Batalha do Passinho, filme de Emílio Domingos.

Fico curiosa de onde vem essa relação de Emílio com a música, em especial, o funk e o hiphop:

‘Como eu conheci o hiphop no Rio? Um amigo da faculdade me disse: “Emílio, você vai adorar conhecer a menina que canta no coral da minha igreja”.

 

Como um apaixonado por black music, conheceu uma menina que tinha um dos primeiros grupos de hiphop na cidade, o Damas do Rap. Passou a frequentar as reuniões dessas pessoas e, assim que descolou uma câmera, foi logo filmar exatamente isso.

O interesse pelo hiphop, rap, funk nasceu por curiosidade pelas letras das músicas. Elas falavam de histórias locais, o que sempre norteou o olhar de Emílio. Ficou ainda mais influenciado pelo ritmo ao ler O Mundo Funk Carioca do Hermano Vianna e ao ver o filme Funk Rio de Sérgio Goldenberg. Foi quando, em 2006, teve a oportunidade de fazer um filme sobre funk com o Marcus Faustini chamado Cante um Funk para um Filme.

“Sempre me incomodou muito a perseguição que o funk sofre. As proibições de bailes, a associação que as pessoas fazem da música com a marginalidade e o preconceito que as pessoas que gostam de funk sentem.”

 

Há 13 anos ele é residente de uma festa de black music itinerante chamada PHUNK. O que começou como um encontro de amigos da faculdade ganhou cada vez mais força, virando um grande evento da cidade. É então que Emílio me conta o seu nome de DJ, que não poderia mesmo ser outro: Saens Peña, nome de uma praça na Tijuca, bairro onde nasceu e viveu até os 30 anos.

Emílio é filho de um mineiro de Visconde do Rio Branco e de uma potiguar de Catolé. Sua infância foi frequentar a escola com amigos do morro do Borel, Salgueiro e Tijuca pela manhã e jogar bola com garotos da classe média à tarde. Do pai, que trabalhava como porteiro no bairro, Emílio herdou um convívio com diversas classes sociais e esse jeito de olhar o outro sem distinções e sem fronteiras.

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Emílio na infância, imagem de arquivo pessoal

Talvez seja essa sua facilidade em transitar entre diversos mundos que tenha feito Emílio escolher a faculdade de Ciências Sociais. Foi no segundo ano da faculdade que se apaixonou pela cultura popular, após “virar rato” da Mostra Internacional de Filme Etnográfico no CCBB. Depois, como estagiário da Mostra, teve a oportunidade de trabalhar com sua mestra Patrícia Monte-Mór, professora da UERJ e diretora da Mostra. Viu de perto cineastas como Coutinho e João Moreira Salles – além do seu grande ídolo Jean Rouch – falarem sobre seus filmes. Foi então que decidiu ser documentarista. Hoje, me conta com orgulho, é um dos curadores da Mostra.

“Uma coisa que sempre me deixou inquieto como pesquisador é que as fontes – quando se faz uma pesquisa mais histórica – são sempre de quem está estudando e é muito difícil encontrar registros dos aspectos sociais das figuras que construíram esta história. É por isso que aponto a minha câmera para quem tem uma cultura muito forte e que não é capa de jornal. Quando o Gambá morreu, personagem do meu filme, não foi no caderno cultural que falaram disso, sabe?”

 

Assim que se formou, começou a trabalhar como pesquisador para documentários; depois como roteirista e assistente de direção com diretores como João Salles, Breno Silveira, Lula Buarque de Hollanda, Andrucha Waddington e Carolina Jabor em filmes como: Mistério do Samba, Viva São João e Pierre Verger. Na TV, foi pesquisador do programa Esquenta, da Globo. Tantas viagens e pesquisas feitas ao redor do Brasil para realizar vários desses trabalhos, mas há em Emílio sempre essa vontade de falar da cultura urbana, do local de onde vem e onde cresceu:

‘Existe um conceito na antropologia chamado “alteridade”. Ver o “outro”. Me questionava muito sobre procurar o outro em uma tribo indígena ou na zona da mata de Pernambuco. Sendo que na minha cidade, do meu lado, no meu prédio, tem o “outro”. Acho que por isso eu me voltei para a cidade. O que me interessa, portanto, são as pessoas. Eu faço filme sobre pessoas, não sobre lugares. Como elas se relacionam com a arte e o cotidiano delas. Como elas usam a criatividade para levar a vida.’

 

i0409200901Screen_Shot_2014-04-16_at_3.38.44_PM.480x480-75Imagens do livro O mundo Funk Carioca, do Hermano Vianna

Voltando para o quarto alugado no Rio, após a nossa conversa, comento com a dona do apartamento sobre Emílio. Luiza, que é curadora assistente do MIS-RJ, me conta que não só também conhece o Emílio como trabalha com ele. O pesquisador é um dos profissionais convidados pelo museu na pesquisa e roteirização de uma sala dedicada à black music e ao funk carioca. Coincidências à parte, retomo a conversa com Emílio para saber mais sobre essa história. Descubro que haverá no subsolo do museu uma pista de dança onde a história da música da noite carioca será projetada em mesas que, em um dado momento, serão alçadas ao teto e ficarão suspensas:

“Estou muito feliz com esse trabalho do MIS. É um reconhecimento que o Estado está dando para o funk.”

 

10489717_736456076421004_6267208326067609173_nImagem de divulgação do próximo filme de Emílio, Deixa na régua!

Ele não pára por aí. Através de sua produtora independente (em parceria com Júlia Mariano), a Osmose Filmes, Emílio filma o “Deixa na Régua!”. Um registro dos salões de barbeiros dos subúrbios do Rio, lugar onde a nova estética da periferia nasce e se expande. Ideia que veio quase que organicamente, após gravar a “Batalha do Passinho”, onde o visual dos dançarinos fazem parte das apresentações.

Entre uma visita e outra aos barbeiros, uma memória que tinha ficado esquecida em algum canto, retornou à lembrança de Emílio. Sua mãe costumava ser manicure e os ambientes de salões já lhe eram velhos conhecidos. Nessa minha caminhada andarilha vejo como as memórias afetivas das pessoas criativas que conheço são construídas quase sempre na infância. Mesmo que a gente só se recorde delas muitos anos e trabalhos depois. Se há algo que cada dia me parece mais inspirador é mesmo nossa trajetória de vida e nosso cotidiano: a Saens Peña de cada um de nós.


Texto: Ana Luiza Gomes. Imagens: arquivo pessoal de Emílio Domingos e divulgação. Obrigada: Bruno Nunes e Emílio Domingos. Para saber mais: osmosefilmes.com.br

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