Quando conheci a pesquisadora Raquel Rodrigues, ela fez questão de me mostrar um livro de uma artista, Daniela Paoliello. Convidar Daniela para uma entrevista foi também abrir espaço para apresentá-la de outra forma: através da Raquel. Esta é uma entrevista feita de um jeito especial, um diálogo entre 3 mulheres: editora, pesquisadora e artista. Que prazer:
Dos caminhos de Daniela Paoliello: algumas observações “de dentro”
Por Raquel Rodrigues
Talvez seja difícil, para mim, falar do trabalho de Daniela Paoliello sem tomar como ponto de partida nosso encontro. Dani – assim a reconheço e a torno íntima – foi uma colega de faculdade que optou por passos institucionais parecidos com os meus; alguém que se tornou uma parceira em muitos trabalhos e discussões, que aconteceram dentro e fora de sua produção, tal como pretendo apresentar aqui. É deste lugar, do lugar da amizade, que falo do seu trabalho artístico. Por isso, proponho desde o título falar de dentro. Sobretudo porque entendo que é do ponto de vista de dentro, que Dani se posiciona em seu trabalho. De dentro de um grupo social, ela fotografa a dança dançando, registra com o corpo, trabalha com o coração.
Eu e Dani fazíamos parte de um grupo nas Ciências Sociais, interessadas em pensar as artes e suas interações com a cidade, com o social. Anos depois, eu caminhei para Sociologia e História, enquanto Dani se adentrou pela Antropologia Visual, pelos filmes de Jean Rouch, pelas pesquisas etnográficas que logo lhe serviram de método e filosofia. A câmera fotográfica a acompanhava em um registro interessado, mas não pretencioso. A cada ensaio concluído e editado, tal como os conhecemos hoje, são centenas de experimentações, momentos e instantes captados. Editar, tratar, organizar e montar são tão importantes etapas do trabalho quanto pensar conceitualmente num trabalho e desenvolver seu projeto em palavras. Mas é no fazer artístico que Dani se realiza, nesse contato com o mundo, no corpo que se movimenta e que se lança quase a um abismo, como ela mesma gosta de enfatizar.
Da antropologia vieram metodologias que a fizeram entender o nativo e, assim, estranhá-lo em campo. Quando a pessoa faz antropologia com o coração, ela faz arte. O mergulho é tal, que se perde a noção da menina, loira, branca diante de um grupo social distinto dela. Refiro-me, especialmente à sua série “Neguin”, que poderia ser tudo isso, mas não só, já que ela extrapola as questões sociais e se torna um trabalho de afeto. Mérito da artista que dispôs de sensibilidade para nos dar a ver o olhar e toda uma atmosfera daqueles garotos. A performance do retrato se dá quando há, de fato, o encontro entre o olhar da fotógrafa e aquele que ela retrata – um encontro dos mais afinados. Foi no embalo da dança, do break, e durante várias conversas que a amizade se tornou obra, obra capaz de fisgar o espectador que se depara com estes momentos.
A: Como surgiu a fotografia na sua vida?
DP: Quando a fotografia surgiu pra mim, eu era só uma adolescente com uma câmera na mão. Gosto de falar sobre como a fotografia se solidifica, sobre o momento em que ela me acerta, me tonteia, reinventa minhas relações. No último ano do curso de Ciências Sociais, eu me interessei por Antropologia Visual e decidi que minha monografia seria na área. Foi quando conheci a cena do Hip Hop em Belo Horizonte, e comecei a frequentar e fotografar o duelo de MC’s que ocorria todas as sextas-feiras embaixo do viaduto Santa Teresa. Foi nesse momento que descobri a potência da fotografia como construtora de experiência. Aí sim é que ela me acerta e muda tudo! Nesse momento é que o fazer fotográfico começa a se formar pra mim como uma prática produtora de abalos, de vivência, de relações.
A: Você é formada em Sociologia (Ciências Sociais), com ênfase em Antropologia Visual. Como os estudos influenciam seu trabalho?
DP: É a partir da Antropologia Visual que eu começo a estruturar minha prática. É pela ideia de trabalho de campo que eu pauto minha postura como fotógrafa. Ir a campo é desmontar ideias preconcebidas, hipóteses, é necessário ativar a intuição, se render a um tempo diferente do seu. Tem a ver com assumir o erro, o acaso, o desabamento das expectativas. E aliás, o erro acaba sendo essencial, pois induz o processo à experiência, mais do que à pré-programação e dá espaço ao acontecimento, exigindo paciência e adequação do tempo frenético da mente ao tempo dilatado da criação.
Cinco fotos acima fazem parte do ensaio “Neguin”, 2012
A: O que é o ensaio “neguin”?
DP: O ensaio “Neguin” se inicia com um corpo que deseja deslocar-se em direção ao encontro de outro corpo, em busca de descobrir qual mundo surge deste encontro, esse mundo entre, que só se dá na relação, que não é o meu mundo nem o de Neguin. E que só se revela a partir de um movimento de encontro, onde os corpos se modificam mutuamente, em um retorno a si próprio que se dá pela mediação do outro.
Conheci o Jonathan (Neguin) no duelo de MC’s que passei a frequentar em 2011. Algum tempo depois, sugeri fotografar seu dia-a-dia, sua casa e treinos de dança. Começou então um período de imersão total, fui absorvida pelo seu mundo. Ia aos treinos de dança três vezes por semana, passava as tardes de sábado em sua casa, com sua família e amigos. Frequentava os eventos de hip hop, as festas, os campeonatos.
Eu dançava como condição para o fotografar. Sem descanso, treinava, aprendia os movimentos que meu corpo em breve repetiria para acompanhar o corpo do outro. Só quando estivéssemos exaustos é que tudo faria sentido. Só depois da exaustão é que o movimento ficaria bom, que a foto ficaria boa, que a conexão se faria, que eu conseguiria me mover, que o transe compartilhado poderia ser registrado, e as intensidades efetuadas em imagem.
Os treinos eram silenciosos, com trocas de olhares frequentes que ritmavam os movimentos, alinhavam os corpos e as intenções. Minha vida ficava em outro lugar, oposto àquele. Eu adorava o silêncio, o estranhamento, a confiança que se alargava de pouco em pouco. Meu corpo transformava-se. Ganhava elasticidade, confiança, equilíbrio. Contestavam meus gestos, meu mover, ensinando-me outros códigos, outras maneiras de me deslocar.
O processo envolvia um ato de paixão, de entrega total; se dava a partir de um trabalho cuidadoso de observação, relação e sensibilidade, que implicava em olhar e sentir, cruzar uma fronteira, ser aceito, modificar o outro e alterar as próprias referências culturais.
O trabalho “Neguin” resulta de uma história sobre a busca pelo outro, sobre falar dessa experiência sutil, sensível que se dá no encontro. Sobre intuição, vontade, vertigem. Neguin me emocionou desde a primeira vez que o vi dançar, me fascinou pela expressão facial e corporal e a energia que levantava. O transe que represento no trabalho talvez seja muita mais meu do que dele. São dois corpos em queda. Dois corpos vibrando em movimento – ritmados ou em descompasso – que orbitam em torno de múltiplos afetos, onde o que importa é ascender em direção ao outro, realizar a potência de afetar e ser afetado.
Série de retratos de Neguin e Cabaneco, 2015
A: O ensaio Neguin foi finalizado em 2012 e hoje você desenvolve uma série novamente com ele e outros b-boys em uma linguagem mais documental. Você consideraria essa série como uma foto reportagem ou como uma documentação desse reencontro?
DP: Eu não chamaria de reportagem. Minha relação com os meninos vai muito além. É vivência, é troca, amizade. Os meninos entraram na minha vida e eu entrei na deles, pedindo licença, com muito negociação. Eu entrei na vida deles pelo silêncio e não pela palavra. Foi pelo corpo, pelo olhar, pelo movimento.
Acredito em trabalhos que são guiados pelo afeto, produzidos em um tempo muito distinto do tempo da reportagem. A pergunta pra mim não é por que fotografar b-boys? Eu não fotografo b-boys. Eu fotografo o Jonathan, o Cabaneco, o João, o Ligero, o Paulinho. Vai muito além do registrar. É sobre o desejo de estar junto. E é lindo ver esse grupo crescendo, ver como a vida de cada um se desdobra, não só a vida de dançarino, mas as histórias pessoais. E em algum ponto a gente se reencontra.
No Concórdia, em Ipanema, no Canta Galo, nas salas de treino, na casa do Neguin ou em qualquer ladeira sem nome. A fotografia é o que nos aproximou, mas não é mais nosso elo. Eu continuo fotografando pelo desejo de compartilhar um pouco dessa vida pulsante, da vertigem que esse encontro produz em mim. É minha forma de gritar: esses meninos são foda, são talentosos, são incríveis! Em poucas palavras, é sobre o desejo de ver o outro, o que pra mim implica em se deixar ver também. Alcançar e ser alcançado. Em uma reportagem acho que isso não acontece. Mas aqui é impossível ver sem se mostrar.
Daniela Paoliello nasceu em Belo Horizonte em 1988. Graduada em Ciências Sociais pela UFMG e mestranda no programa de ARTES da UERJ. Foi contemplada com o XIII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia. Participou de diversas exposições em MG, RJ e SP. Além de contar com publicações virtuais na LatPhotoMagazine, L’oeil de La Photographie, Revista OLD, Convocatória Paraty em Foco, dentre outras. Publicou em maio de 2015 seu primeiro livro: “Exílio”.
Raquel Rodrigues também é natural de Belo Horizonte (MG) e vive e trabalha no Rio de Janeiro, onde atualmente cursa o mestrado em História e Crítica de Arte na UERJ. Cientista Social e Artista Plástica de formação, Raquel atua como pesquisadora em artes, interessada nos temas artes e instituições, colecionismo, arte contemporânea e curadoria.
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