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Celso Brandão: do pai herdou ser andarilho; da mãe, ser artista

Na vontade de conhecer o Rio São Francisco, onde começou a história de minha família andarilha, decidi ir a Maceió e busquei dicas de diversas pessoas amigas. A curadora Adélia Borges, com quem trabalhei recentemente, me recomendou conversar com o fotógrafo e documentarista Celso Brandão, alagoano premiado por suas pesquisas etnográficas em imagens e filmes. Passamos um domingo em sua casa, conhecendo sua história e sua coleção de arte; em busca de saber mais sobre o destino inicial traçado: a Ilha do Ferro.

Screen Shot 2015-04-29 at 6.16.39 PM A caminho da casa de Celso, uma estampa de coqueiros.

A casa de Celso em si já é pura história. Cada canto guarda uma escultura e uma viagem. Andarilho, vai me citando os nomes para que eu visite os ateliês: Valmir, Dedé, Clemilton…Antes de começar qualquer papo mais longo, passa a mão no telefone e liga para Mariana, filha do artesão Aberaldo, e pede para que eles ajeitem a casa de Celso na Ilha, pois eu faria uma visita no dia seguinte. Fico sem jeito, sorrio radiante e agradeço a gentileza. Um presente desses raros. “Não fique menos de duas noites, para conhecer bem a região”, recomendou.

Screen Shot 2015-04-29 at 6.36.47 PMScreen Shot 2015-04-29 at 6.34.52 PM Detalhes da casa de Celso em Maceió, com algumas obras de artistas alagoanos.

Depois, foi logo me contando que seu sonho de pequeno era saber pintar. Sujava a casa toda, ficava irritado, frustrado em não conseguir. Sua mãe estudou escultura e sempre gostou de arte. Seu pai, um homem muito culto e viajado, o estimulava criativamente desde novo. Pois foi o seu jardim de infância em Maceió, sua grande escola. Lá ele teve contato com a arte pela primeira vez. Passava o dia brincando de desenhar e mexendo com o barro. Sua vontade mesmo era fazer teatro, mas não havia aula para crianças na região. A solução foi criar histórias com fantoches e apresentar-se na escola.

Com 13 anos, ganhou do pai uma máquina fotográfica. Em visita à avó no interior, foi para a feira experimentar o novo presente lá. Quando revelou as fotos e mostrou ao pai, o viu ficar furioso: “Gastando meu dinheiro com fotos de cablocos? Pelo menos, fotografe a família!”. Não teve mais jeito, “continuei a fotografar cablocos, aquilo que achava realmente interessante” conta Celso em meio a risadas.

A partir da fotografia, as pessoas sempre lhe fizeram elogios. Um senhor chinês em Maceió era quem revelava seus filmes e fez questão de conhecer o autor das mais incríveis imagens em preto e branco que saíam de seu laboratório. Foi o incentivo necessário para Celso nunca parar. Ao ver o entusiasmo do filho, o pai foi comprando câmeras em viagens. Com uma dessas, tomou um ônibus e foi para o alto sertão, em Água Branca, após ler “Casa-grande & Senzala”. No interior, se descobriu.

reflexosCena do seu primeiro filme, “Reflexos”.

Saiu de Maceió para fazer faculdade de arquitetura em Recife e passou um ano brigando com a matemática. Transferiu-se para um curso novo, Comunicação Visual, muito voltado para a criação de logomarcas, em busca de suprir às demandas de embalagens do parque industrial crescente da capital pernambucana. O início dos anos 1970 foi uma época de grande produção cinematográfica, por isso era irresistível não matar aula para ver filmes. Foi então que aconteceu o primeiro Colóquio de Cineastas e Cientistas Sociais na universidade e Celso assistiu a diversas e inspiradoras palestras – de Gilberto Freyre, inclusive. Ficou deslumbrado com tudo aquilo e, finalmente, encontrou algo que gostaria de fazer profissionalmente.

cJqVY9P g7o1civ JbgBCUB ooQQWctCenas do documentário “O ponto das ervas”.

Na sequência, foi criado o Festival de Cinema de Penedo. Sua amiga, que fazia parte da organização, deu o pontapé inicial: “Celso, tenho aqui uma câmera Super 8 à sua disposição, faça um filme para o festival”. Faltando 3 meses para abertura, foi e fez seu primeiro documentário chamado “Reflexos”, sobre a Lagoa Manguaba, em Alagoas. O filme ganhou primeiro lugar no festival e um dos jurados, Bruno Barreto, o procurou para conhecê-lo melhor. Deu-lhe uma dica valiosa: “faltou o elemento humano”, refletiu. Foi então que ele foi à feira e ao mercado, documentar. Encontrou seu personagem: um raizeiro – segundo Celso, um verdadeiro cenógrafo –, e fez “O Ponto das Ervas”, vencedor do prêmio de melhor trilha original em Brasília.

Mais tarde, como professor da universidade, foi até a Ilha do Ferro fotografar o bordado “Boa Noite”. A região de Pão de Açúcar, onde está situado o povoado, foi ocupada pelos holandeses, famosos por suas construções de barcos, canoas e pela produção de tamancos de madeira. Após os registros, Celso conheceu o bar redondo, construído por Fernando, artesão local famoso pelo trabalho pioneiro com a madeira. “A construção era muito interessante, toda a mobília era feita por Fernando” conta o fotógrafo. Lá, ele comprou uns banquinhos e eles logo foram parar na inauguração de um museu na Paraíba.

“O pai de Fernando tinha uma fábrica de tamancos. Com ele, aprendeu o ofício e criou, inclusive, um modelo de tamanco feminino. Em uma visita a um primo no Rio de Janeiro, Fernando conheceu uma coleção de arte da TV Manchete e algumas esculturas de madeira. Voltou para a Ilha dizendo que conseguia fazer algo similar e assim fez.” relata.

Segundo Celso, Fernando era uma pessoa muito comunicativa e sua casa vivia cheia de gente. Muitos artesãos faziam peças para ele assinar, acreditando que assim garantiriam a venda. Existia o lado bom de tudo isso, Fernando estimulava, ensinava e encorajava a todos a fazerem trabalhos com a madeira. Com o tempo, isso mudou e hoje todos se orgulham de assinarem suas próprias peças. É o genro, Valmir, quem dá continuidade ao seu trabalho.

Screen Shot 2015-04-29 at 6.46.31 PM Screen Shot 2015-04-29 at 6.48.17 PMDetalhes de obras na casa de Celso, em Ilha do Ferro.

Só mesmo chegando à sua casa em Ilha do Ferro para entender a sua relação com as pessoas por lá. Uma vasta coleção, com esculturas por todos os cantos, cada um, um verdadeiro achado nos ateliês da região. O mobiliário de seu interior: cadeiras, bancos, mesas, tudo feito por artistas locais. Senti-me como morando em uma casa dos sonhos!

Máscaras, cortinas de ex-votos, casinhas de madeira, cadeiras de troncos de árvores, bancos que se parecem bichos…um universo fantástico que se une ao som das vacas no fundo da casa, das galinhas do quintal do vizinho e dos morcegos do quarto escuro no fundo. Junte a tudo isso um calor sem fim que faz o chuveiro ser sempre quente, dispensando eletricidade.

Screen Shot 2015-04-29 at 6.51.45 PMScreen Shot 2015-04-29 at 6.51.29 PMPeças decorativas feitas por artesãos locais.

Foram dias inesquecíveis. “Você conhece o Celso?” era garantia de sorrisos e portas abertas. “Aquele cabra anda sumido”, comentam alguns com saudade de suas visitas constantes. Celso construiu sua segunda casa ali e está em diversos álbuns de fotografia de artesãos por lá. É com muito carinho que somos recebidos por todos, em noites desviando de sapos a caminho dos banquetes de Vânia, sua grande amiga e cozinheira de mão cheia, de quem ainda vamos falar por aqui.

Screen Shot 2015-04-29 at 6.54.11 PMEntrada de nossa casa em Ilha do Ferro por alguns dias.

Não poderíamos ter encontrado melhor lugar para ficar e conhecer. Poucas vezes voltei de uma viagem assim, como se o corpo estivesse aqui, mas a alma ainda sentisse o calor por lá. Acordar ao som do galo cantando, os sinos das vacas estalando, o sol invadindo o quarto. Dormir com o mosqueteiro para me proteger, assim que o sol dá boa noite e torna o clima mais ameno para deitar. Atravessar de barco para o outro lado, Sergipe, em alguns minutos e se banhar no Rio São Francisco, acompanhado do melhor pôr do sol. Nem se lembrar que existe telefone, celular, internet, apenas a prosa boa dos causos hilários de Zé Crente. As estradas que percorremos formaram as mais ricas paisagens que já conheci.

 

Screen Shot 2015-04-29 at 6.59.18 PMEstrada para Ilha do Ferro, Alagoas.

Obrigada Celso, pela hospitalidade e por compartilhar sua morada e suas histórias com a gente. Obrigada, Bruno e Viquitor por me acompanharem nessa nova caminhada. Andarilha, Alagoas, 2015.


 Texto: Ana Luiza Gomes Fotos: Ana Luiza Gomes e Viquitor Burgos. Obrigada: Adélia Borges, Celso Brandão, Bruno Nunes, Eder Oliveira e Viquitor Burgos.

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