Quem nos apresentou ao paisagista sonoro Julio de Paula foi a produtora cultural e radialista Biancamaria. De lá para cá, nos encantamos com o projeto Pai dos Burros, criado pela artista visual Teresa Berlinck em parceria com Julio, que traduz em imagens e sons cada página do Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo.
Formado em Comunicação (Rádio e TV), Julio é diretor de programas da Rádio Cultura FM de São Paulo e editor de Supertônica, programa com Arrigo Barnabé. Boa parte da sua atuação profissional é também dedicada ao registro e salvaguarda de manifestos culturais e populares pelo Brasil e pela America Latina. Por aqui falamos sobre suas andanças e ganhamos um presente: uma trilha feita para o nosso Dicionário de Bolso especial “brincantes”:
Como foi a sua infância e como você brincava?
Passei minha infância nas ladeiras de uma pequena cidade do Vale do Paraíba. Como meus irmãos eram muito mais velhos do que eu, em casa eu brincava muito sozinho, passando bastante tempo com brinquedos de montar. E a inventar histórias com playmobil. Uma tia me incentivava a desenhar – o que por um certo tempo foi uma das atividades preferidas. Quando me juntava com amigos ou primos, vinham os jogos. Na rua, algumas brincadeiras tradicionais, como esconde-esconde. Meu imaginário foi em grande parte formado pelas festas tradicionais, com o colorido das quermesses e das procissões.
De onde surgiu a sua paixão pelo som?
Acho que sou de uma geração que prestava mais atenção ao som. Apesar de ter crescido com a TV dos anos 70 e 80, ainda bem pequeno, lembro do rádio em casa, com programas populares, tipo Gil Gomes ou um programa de humor com Os Trapalhões (sim, eles integravam um programa de rádio toda noite), e meus irmãos escutando LPs, que iam de rock progressivo a Chico Buarque, passando pelo repertório instrumental. Tenho uma vaga lembrança dos meus avós também escutando rádio, como a Ave Maria, no início da noite. Mais tarde, na Faculdade (fiz Rádio e TV no início dos anos 90), fui naturalmente me direcionando para o rádio e nunca mais parei. Consequentemente o rádio me levou a desdobrar os trabalhos para fora do meio. Hoje estou a meio caminho entre o rádio e as artes sonoras.
Por que fotografar os brincantes do Reisado dos Irmãos na Série Pés Devotos?
Desde meu primeiro projeto, tenho a cultura popular como foco de atenção. Em primeiro lugar, porque o assunto, a estética, a forma de manutenção ou a própria dinâmica da cultura tradicional me interessam, me emocionam. Num segundo plano, como todo meu trabalho radiofônico foi desenvolvido em emissoras de caráter cultural e educativo, sempre me senti na obrigação de compartilhar esse conhecimento que adquiri de forma empírica, em pesquisas informais.
Isso se deu em grande parte por meio da série de programas “Veredas – Música e Tradição Popular no Brasil”, no ar entre 2001 e 2012. Durante muitos anos, em especial nos anos de preparação ou no início do projeto, passei a frequentar festas para acompanhar os grupos musicais. E todos nós sabemos que nesses casos o som é um elemento que vem sempre agregado às danças e a um universo visual particular.
Fotografei bastante com a intenção de documentar. Com o passar do tempo, percebi que nem sempre uma fotografia formal dava conta daquele universo e passei a experimentar mais. Gosto muito de fotografar, às vezes, faço alguns registros em vídeo também. Sempre que possível, porque a maioria das vezes estou com o gravador nas mãos.
Nessas experiências, passei a registrar os pés dos brincantes. E, especificamente neste dia do Reisado dos Irmãos, eu estava acompanhando a vinda do grupo a São Paulo para participar de um lançamento de um projeto do grupo A Barca. Enquanto esperava o momento de gravar a entrevista, na boca da noite fotografei um cortejo do grupo nos paralelepípidos do SESC Pompéia. Anos depois, em pesquisa de campo pelo Cariri, pude acompanhar o Reisado no bairro deles, no Juazeiro do Norte. Acho esse pessoal emblemático – pela força, resistência, pelo que representam daquele lugar místico, forjado em torno do culto ao Padre Cícero.
O que é o Pai dos Burros?
O PAI dos BURROS é uma instalação que vai ocorrer no segundo semestre de 2016. Projeto em colaboração com Teresa Berlinck, artista visual, que começou a desenhar sobre TODAS as páginas do Dicionário do Folclore Brasileiro, do Cascudo. E me convidou para esta empreitada, me propondo criar uma peça sonora em diálogo com os desenhos. Então, já faz 2 anos que estamos nisso, estou re-criando uma série de verbetes do Dicionário, me valendo de mecanismos particulares a cada proposta. Então, tem entrevistas, colagens, fragmentos de acervos, soundscapes, citações do próprio texto do Cascudo e muitas gravações originais para o projeto, sempre com o intuito de devolver para a linguagem sonora um dicionário que nasceu nas ruas.
Para você, o que é “brincante”?
Brincante é o grande agente da cultura popular, em especial das nossas danças dramáticas. É o personagem que canta e dança, mas também faz sua fantasia. É o compositor instrumentista, que também faz o papel de luthier construindo seu instrumento. É o devoto que aprende a dançar para pagar uma promessa. É aquele que decora o texto centenário e vai modificando esse mesmo texto. É o que encarna um personagem de uma brincadeira e o leva para outra brincadeira. De um modo mais amplo, brincante também é aquele que está no entorno da festa, que acompanha os grupos, uma espécie de espectador atuante, que está sempre a interagir.
Obrigada, Biancamaria Binazzi. Fotos de acervo e registros de Julio de Paula.