As crenças. Os ritos. A fé: tema que sempre achei central em pesquisas sobre a cultura brasileira. A consagrada série “Penitentes: dos Ritos de Sangue à Fascinação do Fim do Mundo” do fotógrafo paraense Guy Veloso me vem a mente. Um transe entre o documental e o espiritual, onde eu me sinto em uma intimidade absurda e proibida com o outro. Convidar Guy Veloso para falar sobre a criação dessa série seja, talvez, surreal:
Iniciado em 2002, “Penitentes: dos Ritos de Sangue à Fascinação do Fim do Mundo”, curado por Rosely Nakagawa, tinha previsão de durar 13 anos. Mas para mim está sendo muito difícil “expulsar” este tema de minha mente, dado o envolvimento com as pessoas que é característico (creio) em meu trabalho.
“Penitentes”, também chamados “Alimentadores das Almas”, são grupos laicos de caráter secreto que durante certas épocas do ano, saem noite adentro rezando pelos “espíritos sofredores”, geralmente cobrindo rostos com panos ou capuzes.
Tive a sorte de, em 2010, ser o primeiro pesquisador a provar que estas confrarias de tradição oral, grande parte de difícil acesso ou até sigilosas, poderiam ocorrer nas 5 regiões do Brasil. Até agora (2015) são 161 grupos pesquisados. Uma pequena parte deste trabalho foi exposta na 29a Bienal de São Paulo.
Como sempre retorno aos mesmos locais com o passar dos anos, faço amizades com membros destas confrarias. Uma delas, a querida Sra. Jesulene Ribeiro (Dona Nenezinha), convidou-me a fazer arte de seu grupo de Alimentação das Almas (fundado em 1905 em juazeiro-Bahia), algo que aceitei orgulhosamente, sendo iniciado.
Em visita à exposição “Bailes do Brasil”, me encontrei. Há alguns anos eu pesquiso sobre as “entidades” brasileiras e busco sedenta por esse olhar contemporâneo para a tradição. Um jeito de ver que não está viciado em regionalismos ou apenas nas tradições. Mas que consegue compreender que a nossa raiz é mais ampla – é também toda essa antropofagia de encontros de culturas. Olhar esse que traça nas fotos do I hate flash e Verger, nas músicas estrangeiras e brasileiras, no erudito e no popular, um ponto de conversão: o nosso modo de ser. Por aqui os curadores Jum Nakao e Ricardo Feldman se encontram para fazer um relato sobre o processo de fazer a exposição:
Não é apenas a terra ou a língua que nos une, são nossos trajes e trejeitos, nossos sons e movimentos, é a ginga suave de nossos pés.
Em geral, os registros da fotografia de moda não retratam o que realmente se tornou moda ou refletem os modos do povo de um país. Percebemos que o ato de se vestir, como forma ritualística e identitária, acontece com frequência por ocasião do baile.
O baile simbólico de nossa exposição nasce de nossas manifestações coletivas. Baile é convivência, celebração, reunião e a partir de seus ritmos e vibrações, provoca múltiplas possibilidades de encontros. Nossa pesquisa se orienta pela qualidade dos diálogos que ali ocorrem e pela beleza das perspectivas que se criam a partir dessas transversalidades: música, moda, dança, imagem, som e movimento.
Acreditamos que baile bom é baile cheio, por isso, selecionamos 230 fotografias que mostram o Brasil do início do século até os dias atuais. Uma congregação de olhares de fotógrafos estrangeiros e brasileiros, renomados e jovens, urbanos e rurais, de imagens feitas desde as primeiras câmeras fotográficas até celulares. Verger, Farkas, Barretão, Stupakoff, Mari Stockler, Dani Dacorso, entre outros, até coletivos atuais como Lost Art e I Hate Flash. Os mais diversos pontos de vista em tempo suspenso no salão, contrastando os mais distintos contextos e períodos.
As três primeiras áreas da exposição buscam leveza: imagens em diversos formatos, alturas e posições, parecem levitar soltas no ar. Cada uma dessas salas recebe uma trilha sonora que revisita seus universos musicais. Diversas influências estrangeiras entram nesse baile antropofágico, onde fica clara a capacidade de nós, brasileiros, transformarmos tudo com nosso ziriguidum.
Após esse passeio pelas três primeiras áreas onde o movimento está na música, decidimos criar uma inversão, uma edição de imagens de vídeo com passos de dança, swing e remelexos estampados nas roupas brancas. Alvejados como uma folha em branco, prontos para serem preenchidos de significados, estes figurinos são ao mesmo tempo personagem e cenografia de projeção, corpo e memória.
“Bailes do Brasil” tem a intenção de fazer com que o visitante encontre dentro de si seus pedacinhos de Brasil, seja pela vivência, ascendência ou simplesmente pelo batuque que vive e significa em cada um de nós brasileiros.
Por Jum Nakao e Ricardo Feldman
Fotos de divulgação
Exposição Bailes do Brasil Onde: Solar Marquesa de Santos – Rua Roberto Simonsen, 136 – Sé, SP Data: de 28 de junho a 25 de outubro de 2015. Horário de visitação: de terça-feira a domingo, das 9 h às 17 h. Mais informações:http://www.museudacidade.sp.gov.br/solardamarquesadesantos.php
Eneida Serrano é importante fotógrafa gaúcha que eu conheci em minhas pesquisas sobre a região, através de sua série Interiores.Ao convidá-la para participar do nosso Diário de Bordo, Eneida nos mandou um presente. Um curta que dirigiu ao lado da cineasta e jornalista Karine Emerich, premiado no Festival de Gramado, sobre a história de Sioma Breitman, nome importante da fotografia em Porto Alegre. É um prazer receber as palavras de Eneida sobre a trajetória para fazer esse trabalho, ouvir a história das pessoas que encontrou e reencontrou nesse caminho, e poder ver o filme “Sioma, o papel da fotografia” na íntegra aqui:
No tempo em que a fotografia era de papel e circulava de mão em mão, o nome de um fotógrafo ficou famoso em Porto Alegre: Sioma, assinado no canto de suas fotos, era a marca registrada em cada imagem da vasta obra que Sioma Breitman construiu em meados do século XX.
Ele fotografava de tudo um pouco, mas era conhecido e admirado, especialmente, por suas fotos de noivas e por seus retratos de tipos populares, premiados em salões pelo mundo afora. “A fotografia aproxima os povos”, dizia aquele ucraniano que emigrou para o sul do Brasil nos anos 1920, e viveu e trabalhou aqui por toda a sua vida.
Paixão Cortes, por Sioma e por Eneida
Cheguei a fotografá-lo uma vez, na sua última exposição de retratos, em 1979. Eu estava começando na fotografia e não tinha ideia do quanto já tinha andado aquele fotógrafo na vida. E muito menos ainda, que eu viria a fazer um filme sobre ele, muitos anos mais tarde. Quem soube antever o futuro foi um de seus amigos, lá em 1938, quando lhe escreveu numa dedicatória “… ao amigo Sioma, artista que vai mais longe que sua máquina fotográfica”.
Recentemente, iniciando uma pesquisa sobre o legado daquele fotógrafo, tenho essa e muitas outras fotos em mãos, confirmando que elas atravessaram não só as fronteiras geográficas mas também as do tempo. Me encanto vendo essas ampliações manuais esmeradas, feitas pelo próprio fotógrafo, e carimbadas no verso, marcando todas as diversas cidades onde essas imagens foram expostas. E calculo que ainda seria possível encontrar, hoje, algumas daquelas pessoas das fotos … O que significariam para elas , ou para seus descendentes, essas fotos? Que recordações elas trazem?
Irmãos Samuel e Irineu Breitman, por Eneida e por Sioma
Me detenho no retrato de um menino sapateiro, de uns 8 anos mais ou menos. Ele fez parte daquela mostra retrospectiva de retratos e leio, num discreto e amarelado recorte de jornal da época, que aquele guri, já então um jovem senhor, aparecera no Museu para rever o fotógrafo e, quem sabe, obter uma foto sua.
Mais 40 anos se passaram e penso como seria interessante reencontrar alguns desses personagens! Só a busca daquele menino, o “Negrinho José”, já valeria um filme. Um filme! Por que não?
A partir dessa ideia, empreendi um trabalho de produção, pesquisa, busca de patrocínio e formação de equipe. O plano era fazer um documentário com o depoimento de diversos personagens. Alguns se apresentaram através de uma convocação veiculada através de jornal, outros, eu saí à procura. O roteiro previa um filme feito com o coração, buscando, antes de tudo, a possível emoção dessas pessoas, reveladas em fotos de 60 anos atrás. Muita gente me telefonou: noivas, aniversariantes, tipos populares…. Só o menino engraxate, que inspirara a ideia inicial, parecia impossível de ser localizado.. O filme estava quase fechando sem ele, quando fiz uma última busca pelo centro da cidade e, para a minha surpresa, lá estava ele! Foi uma grande emoção identificar, imediatamente, os mesmos traços do rosto do menino que eu procurava, os mesmos “ares” de semelhança e de vida.
“Negrinho José” por Sioma e José Cardoso, por Eneida
As pessoas da maioria dos retratos de Sioma Breitman têm aquele ar indescritível e atraente, que as torna sempre vivas toda vez que olhamos pra elas. Acho que é essa a principal característica do bom retrato.
Esta semana convidamos o fotógrafo cearense Samuel Macedo para colaborar com nosso Diário de Bordo. Conheci Samuel em Rio Acima (MG), visitando uma exposição do Infâncias, projeto do qual ele participa. No Andarilha, ele compartilha um pouco sobre o seu processo criativo para fotografar o Reisado de Caretas através de palavras, imagens e até áudios contando um pouco mais sobre suas histórias:
“Eu sou cearense e, de menino, convivo com manifestações culturais como esta. Há alguns anos registro e acompanho o caminhar dos mestres e de suas brincadeiras. Comecei a fotografar ainda quando criança. Meu avô tinha uma oficina de onde saiam as coisas mais legais que já vi na minha vida; um monte de invenção que ele fazia.
Uma dessas invenções, a que mais me chamava a atenção, era a câmera escura. Por conta dela, comecei a ter vontade de fotografar.
Às margens da Lagoa do Sassaré, por volta da década de 1930, já se tinha notícia dos brincantes do Reisado de Caretas. É como contava Dona Neuza, mãe de Antônio Luiz, atual mestre do grupo de caretas do sitio Sassaré. Fotografo o grupo há 3 anos. Sempre que vou ao Cariri, passo na casa de Mestre Antônio para conversar e fotografar.
Eu tenho uma imagem muito forte da minha infância, uma fotografia de Tiago Santana da fachada da casa de Mestre Antônio e os Caretas.
Uma dica que dou a vocês: vá à casa de Antônio, se aconchegue, tome um café, que eu lhe garanto boas histórias.
Não me esqueço da “árvore que correu para a estrada”:
O Reisado de Potengi é um grupo único e possui uma dinâmica bem diferente dos demais, o que me faz querer sempre estar por perto e ver o que estão criando. Em breve, este trabalho que fiz será exposto na casa do Mestre Antônio Luiz, compondo o acervo do Museu dos Caretas do Sítio Sassaré em Potengi; dentro do projeto dos Museus da Chapada do Araripe, da Fundação Casa Grande”
Taynara Pretto é catarinense e coleciona mais endereços de morada do que eu. É quem nos recebeu em sua atual casa, em Maceió, com o melhor bolo de rolo de Alagoas e um punhado de carinho. Conviver com quem vive, trabalha e faz música é um constante presente em minha vida. Por isso, quando recebemos o convite de nosso amigo, Victor Almeida, não resistimos. Fomos lá conferir mais uma edição do festival de música independente, o LAB, criado por ele e produzido pela Taynara:
Viver em uma cidade como Maceió é conhecer de perto a expressão “faça você mesmo”. Perceber as suas necessidades e as de quem convive no mesmo meio que você e querer transformar isso em algo positivo é – e só pode ser – uma coisa boa. Foi assim que nasceu o Festival LAB, lá em 2009: da vontade de reunir amigos em um espaço legal para ouvir música. Música que, de certa maneira, é relevante para nós, não obedecendo, necessariamente, questões de mercado ou projeções de público.
Peguei o barco andando, dois anos depois, quando estava sendo planejada a edição de 2011, mas entrei nele com tudo e sem colete salva-vidas (afinal de contas, no final do dia, trabalhar com produção cultural é sempre um risco, um risco que corremos felizes, mas que corremos). Alguns anos e várias noites de shows depois, sei o quanto fazer parte disso me motiva e me faz bem. Pensar – junto com Victor de Almeida (criador do festival) – em cada banda, cada espaço e cada detalhe que fazem do LAB um festival de música sempre foi um grande prazer.
A música, como tantas outras expressões artísticas, tem o poder absurdo de conectar as pessoas e quem frequenta o LAB – ou faz parte dele de alguma forma – sabe o quanto isso pode ser real. Hoje, mais que um pequeno festival que acontece em Maceió, o LAB é um espaço onde a gente pode encontrar os amigos, sejam eles de Minas Gerais, de São Paulo, de Pernambuco ou de qualquer outro lugar. O que antes era uma necessidade de entretenimento, hoje já se tornou uma necessidade afetiva.
Necessidade de se sentar para ouvir e contar histórias sobre música, canções e sobre discos. Quem faz parte do LAB compartilha um senso de comunidade que mantém a ideia relevante, mesmo que seja pra um pequeno grupo. O que, pra nós, já é suficiente. Afinal, é com a proximidade, o jeito intimista, cheio de calor e sentimento, que a gente se satisfaz.
Das coisas que eu me lembro com mais clareza das correrias dos dois dias de festival que produzimos esse ano foi justamente estar sentada nos degraus do cinema do Centro Cultural Arte Pajuçara quando o cantor Adam Stockdale, da banda Albatross, desplugou o violão, desceu do palco e cantou: “Me diga, querida / Onde iremos? / Onde iremos daqui?” Não sei para onde iremos, mas acredito que a certeza é que continuaremos nos divertindo!
Por Taynara Pretto.
Para conhecer mais sobre o Festival LAB, escute também uma lista de músicas das bandas que já passaram por lá: