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Rio Grandes, por Pablo Pinheiro

Caminhando pelo Brasil, sempre me pego pensando como algumas pessoas possuem similaridades mesmo morando à distâncias grandes umas das outras. Como os gaúchos e os potiguares. Rio Grandes que têm em comum a figura do vaqueiro. Foi Iana Soares quem me mostrou o ensaio “Uma tradição nos Rios Grandes: a imagem do vaqueiro contemporâneo em transição”, do fotógrafo Pablo Pinheiro. Fiquei encantada com o seu olhar atual para a tradição e o paralelo que ele criou entre as diferentes culturas e regiões através das pessoas. Nesse ensaio em preto e branco, o humano é a nuance que transborda margens. Contemplado pelo XIV Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia, é sobre esse trabalho que Pablo relata seu processo criativo aqui:

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Uma coisa muito interessante de todo esse processo do RIO GRANDES foi, é e será, o meu envolvimento com a aprendizagem. Começa por eu ter tido uma formação na cidade, e em um determinado momento da minha vida, ter passado a perceber (também) o universo rural. Uma percepção que me gerou uma curiosidade, que me fez criar uma ação de conhecer e que começou por uma pergunta: “como me sinto tão daqui se não sou daqui?!”. O primeiro passo foi dado por não ter uma resposta.

No início, minhas buscas foram somente no Rio Grande do Norte. Procurava uma região em que eu pudesse encontrar diversas raízes tradicionais do que significava a formação do Estado em que moro. Foi procurando e encontrando que vi uma figura que iria representar boa parte do que pesquisava: o vaqueiro de gibão de couro. Uma figura que representa um recorte autêntico, brasileiro, de uma tradição. Naturalmente, fui me aproximando e conhecendo um pouco desse mundo que não era o meu.

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Aos poucos eu fui construindo os caminhos de convívio. Para cada realidade encontrada criávamos, eu e eles, um tempo diferente para nos conhecermos. Fui me tornando um conhecido ao mundo deles e, ao mesmo tempo, me apropriando de um mundo que não era meu. Criei muitas amizades, que mantenho carinhosamente até hoje. Eu procuro sempre voltar aos locais pelos quais passei e atualizar as conversas. Sempre temos mais histórias para contar.

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Terminei descobrindo algo muito mais rico. Uma nova maneira de aprendizagem. Com uma visão completamente diferente do meu mundo. Foi aí que muitos viraram mais do que conhecidos e amigos, eles se tornaram meus professores. O mais engraçado, e que ainda acontece, é que me vejo numa sala de aula, sentado com meus colegas de lá, assistindo um deles nos ensinando alguma coisa nova. E todos nós ficamos assistindo a aula sem piscar os olhos. E sim, existe um período de avaliação também. Continuo na média, até agora não reprovei.

A forma como esta experiência tomou conta de mim, foi se transformando em força para o meu desejo querer conhecer mais. Comecei a me perguntar como seria esta figura do vaqueiro tradicional em outros lugares. E a primeira figura que me veio à mente no país foi a dos gaúchos, uma figura tão forte quanto a imagem do vaqueiro nordestino. O que eu fiz? Na primeira oportunidade corri para conhecer o sul e esta figura.

O tempo para produção foi muito curto, muito mesmo. Se eu pudesse ficar mais, ficaria. Mas não interferiu no resultado final. Tudo já estava muito latente no processo e o que nasceu desta experiência me mostrou um caminho de certezas inquietas; que a história não parou por aqui. O resultado é maduro, com uma visão maturada por mim, Rosely Nakagawa e todos os envolvidos.

Toda a estrutura do projeto foi pensada para ser disponibilizada via internet. Quem trabalha com educação, sabe a importância de multiplicar os agentes. E eu irei aguardar novas oportunidades para voltar e reencontrá-los. Botar o papo em dia, lhes contar como o mundo daqui reagiu ao mundo deles e ver se consegui passar de ano nessa escola.

Pablo Pinheiro


Pablo Pinheiro é fotógrafo há mais de 16 anos. Formado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Paulista, onde mais tarde coordenou os cursos de Comunicação Digital e Fotografia Digital. Depois lecionou em duas instituições Universidade Potiguar e a Fanec em Natal/RN, ambas no curso de Comunicação Social. E desde 2007 é o responsável pelo Estúdio P | Produção e Imagem, uma empresa que atua com uma identidade própria no panorama cultural e fomento da fotografia no Brasil, assim como no mercado publicitário, jornalístico e documental. Para saber mais: estudiop.com.br/riograndes

 

A luz do sertão nas marcas de gado e gentes, por Iana Soares

Quando eu vi o ensaio da jornalista e cientista social, Iana Soares, “Sertão a Ferro e Fogo”, traçando o trajeto das marcas do ferro pelo sertão cearense, não tive dúvida. Convidei-a para contar um pouco sobre este seu trabalho como editora de fotografia do jornal O Povo. Depois de ler sobre sua caminhada, fiquei com a impressão que esses passos deixaram também marcas em Iana, que seguiu solta de Fortaleza para Barcelona para fazer um mestrado, mas levando sempre o sertão em si:

https://youtu.be/YcWXMbjKKy8

A dúvida e o desconhecido movem o passo e desenham os encontros dos que escolhemos o caminho do jornalismo. As histórias dos outros escrevem também a nossa, nas trilhas dos pés que pisam o asfalto e também a terra amarela, marrom e vermelha do semiárido nordestino. Se na vida colecionamos poucas certezas, uma das que costurei sob a pele é a de que o sertão é infinito. É o território do paradoxo e da invenção. Nos dias feitos de esperança, é sempre fim e recomeço.

Screen Shot 2015-08-24 at 9.37.46 AMChico Gomes, ferreiro habilidoso do distrito de Santa Teresa, em Tauá. Foto: Iana Soares

Fiz diversas fotografias pelo sertão cearense. As que mostro aqui são parte do “Sertão a Ferro e Fogo – Marcas de gado e gente”, publicado no jornal O POVO, em agosto de 2014. Partimos de um detalhe, uma pista: as marcas de ferrar gado, aquelas letras sobre o pelo dos bichos. A partir daí traçamos um recorrido histórico pela colonização do Ceará, que teve na cultura do gado um de seus principais elementos, e investigamos como essa relação foi se transformando ao longo dos anos. É um trabalho que resgata a memória e busca compreender como ela se reinventa e atribui novos sentidos à relação não só com o gado, mas com o território afetivo, cultural, econômico e histórico.

Screen Shot 2015-08-24 at 9.45.26 AMLuiz Monteiro domina aboios e versos em Quixeramobim. Foto: Iana Soares

É um ensaio feito principalmente de retratos e eles só existem pela oportunidade que cada um me deu de transformar suas histórias em imagem. Agradeço ao Luis Monteiro, tão vivo de aboios e lembranças; ao Chico Gomes, que enfeita o sertão com uma letra bonita e os sons da rabeca; aos ferreiros de Potengi; à Dona Nira, mulher forte e hospitaleira; aos vaqueiros da Morada Nova, os grandes e os pequenos; ao Raimundo Cidrão, que descobri ser primo legítimo do avô que não conheci; ao vaqueiro Alberto, um menino de 62 anos; ao Seu Pedro e à dona Nadir, tão bonitos com aquele buquê de ferro; ao Virgílio Maia, que tantas histórias nos contou. A todos que atravessamos o caminho e nos atravessaram, em viagens pelos municípios do interior do Ceará: Morada Nova, Quixeramobim, Potengi, Juazeiro, Crato, Milhã, Nova Olinda, entre outros). Por me apresentarem a vida e a magia do sertão.

Screen Shot 2015-08-24 at 9.00.00 AMScreen Shot 2015-08-24 at 9.00.10 AMFamília de Vaqueiros. Foto: Iana Soares

Este projeto foi o meu “até logo” ao jornalismo. Em setembro de 2014 vim estudar um mestrado em Criação Artística na Universidade de Barcelona, na Espanha. Tenho pesquisado a relação entre o real e o ficcional dentro da fotografia contemporânea, em obras que têm a deriva e o caminhar como partes fundamentais do processo de criação. Depois de atravessar o Atlântico, tenho ainda mais certeza de que o sertão não é apenas um lugar físico, e sim um jeito de olhar o mundo. Todos os dias meus olhos amanhecem com a luz que aprendi a enxergar no Ceará.


O especial “Sertão a Ferro e fogo – Marcas de Gado e Gente” foi ganhador do Prêmio BNB de Jornalismo, na categoria de Fotografia Nacional (2015) e na categoria Reportagem Nacional, com textos de Ana Mary C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro, Demitir Túlio, Émerson Maranhão e edição de Fátima Sudário. Além disso, ganhou o Prêmio ESSO de Jornalismo na categoria “Criação Gráfica”, com projeto assinado por Gil Dicelli.

 

Vilanova Artigas, o arquiteto e a luz; por Laura Artigas

Como será ser neta de alguém tão importante para a história da arquitetura brasileira como Vilanova Artigas? Foi quando visitei a Ocupação Vilanova Artigas no Itaú Cultural que pensei em escrever para a cineasta Laura Artigas, sua neta, convidando-a para contar sobre a co-direção do documentário Vilanova Artigas, o arquiteto e a Luz. Por aqui ela compartilhou um texto escrito com muito carinho sobre todo esse seu processo de criação: 

O professor de roteiro advertia que adaptar uma história real para a ficção pode ser uma tarefa árdua. Um roteiro de ficção precisa de uma estrutura, e de certa lógica, já os fatos da vida real nem sempre fazem sentido.

Em 2009 me deparei com vida de Vilanova Artigas acumulada em caixas e pastas em um quatro na casa dos meus pais. Desenhos e mais desenhos.

Artigas foi um arquiteto do “breve século XX”, segundo o conceito do historiador inglês Eric Hobsbawm. Ele nasceu durante a Primeira Guerra e morreu antes da queda do Muro de Berlim. Era comunista. E pôde viver a Guerra Fria que pautou o período in loco. Morou nos Estados Unidos, fez seu próprio “on de the road” nos anos 1940, antes do Jack Kerouac, e passou alguns meses na União Soviética mais tarde, em 1953.

As palavras de Artigas seduziram alguns e incomodaram outros como o governo militar, por exemplo . Vovô tinha uma verve potente, mas dizia as coisas mais belas quando desenhava. Seu traço era livre e preciso e o enfrentamento do papel em branco foi o desafio favorito no mundo, ponto de convergência entre a razão e a emoção. Lugar onde seus sonhos ganhavam forma. E ele tinha muitos. Dedicou a vida a colocá-los em prática.

Os rascunhos dos artistas sempre me pareceram mais interessantes do que a obra final. Promovem aquela adorável subversão de espiar a intimidade alheia. Conviver com os desenhos do Artigas foi o primeiro passo para tentar retomar nossa convivência de quatro anos.

Desenhos de João Batista Vilanova ArtigasDesenho favorito do avô que Laura guarda com afeto.

Minhas memórias a seu respeito foram construídas graças às muitas e muitas histórias contadas por minha avó, pelos meus pais e por alguns amigos dele com quem convivi desde pequena. Uma sequência de fotos feita no inverno de 1983 na casa do Campo Belo, a segunda residência do arquiteto, projeto de 1949 – me ajudou dirigir as cenas mentais. Nela, visto um conjuntinho de moletom vermelho e seguro uma amostra de carpete verde (nos anos 1980 os apartamentos da classe média costumavam ter piso de carpete). As amostras de material de construção que ele recebia aos baldes eram brinquedos divertidos. A da foto decorou a sala da Barbie por um tempo.

Ser “neta do Artigas” é nascer com uma bagagem cultural privilegiada, é acostumar-se a viver em locais bem projetados e sentir-se muito triste sem luz natural. Contudo, também é nascer coadjuvante. Por isso, durante muito tempo a pergunta “Você nunca pensou em ser arquiteta?” soou como uma ofensa. Costumava a me referir ao papo sobre arquitetura como “arquitetês”.

Aprendi o básico da língua por osmose, ainda que não domine sua gramática E esta ficha caiu em um momento bastante trivial. Uma colega de trabalho organizava o casamento e reformava o apartamento simultaneamente comparava o valor da decoração de flores do salão de festas e o preço cobrado pelos arquitetos para fazer o projeto executivo da obra. Optou por pagar o primeiro e dispensou o segundo, preferindo dar um “jeitinho”. As flores ficaram lindas e obra custou três vezes o planejado. Assim, compreendi que a profissão do meu avô era vista como um luxo e não como uma necessidade pelos não alfabetizados em “arquitetês”.

Screen Shot 2015-08-20 at 10.58.40 AM “A FAU-USP é a catedral dele”, diz a neta sobre uma das cenas prediletas do filme. 

Comprar um projeto de arquitetura é comprar um plano. Um sonho. É subjetivo. E os brasileiros nunca foram muito bons em planos e investimentos a longo prazo. Artigas entendeu este calcanhar de Aquiles nacional desde cedo. Ele amava o Brasil e criou efetivamente, desenhando em muitos papeis, o projeto para o país melhor. Começou a colocar o plano em prática quando fundou a FAU-USP em 1948 e depois liderou a reforma de ensino da instituição em 1962. A solução era bastante objetiva: formar profissionais humanistas, instruídos para construir efetivamente uma sociedade mais justa.

Artigas argumentava que um aluno de primeiro ano não poderia ser tratado realmente como um ser “sem luz”, tal qual sua etmologia (do latim alumnié = “sem luz”). Pois, ele já acumulava experiências de viver em casas e em cidades. O teto da FAU-USP é totalmente transparente para iluminar as mentes e as pranchetas dos estúdios de projetos.

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Artigas, 1979, no Edifício da FAU. 

Nos desenhos das casas de Artigas as salas são amplas, os quartos pequenos e os banheiros poucos. Artimanhas que obrigam a interação familiar. A convivência era outra bandeira dele, porque só ela explicita personalidades, promove e supera os conflitos absolutamente humanos.

A curiosidade sobre o meu avô foi nutrida pela faculdade de jornalismo e instrumentalizada na especialização em roteiro de cinema. Tinha, portanto, uma história com uma curva dramática potente, protagonista com conflitos internos e externos bem definidos, e dois pontos de virada no cômodo ao lado na casa da família.

Minha busca maior no filme foi tentar sentir como era estar com ele. Assim, no documentário “Vilanova Artigas: O arquiteto e a luz” (que também dirigi) os entrevistados emprestaram suas sensações. Tanto na convivência pessoal, como nas conclusões viscerais sobre vivenciar uma obra sua.

“Sem nenhuma concessão ao barroco”, disse o Artigas sobre o projeto da FAU-USP em 1973. Nesta jornada comecei a compreender o meu avô. Esta frase talvez resuma sua personalidade, seu estilo de projetar e sua atitude em relação ao mundo. Ele buscava a simplicidade, a essência e o necessário, a razão, o amor – pelas pessoas e pelo fazer. Artigas amou muito. Qualquer semelhança com a ficção será mera coincidência.

Por Laura Artigas


Vilanova Artigas, o arquiteto e a luz, em cartaz no Itaú Cinema.

 

O Museu no Balanço das Águas, por Maria Amélia Vieira

Quando li as primeiras histórias do Museu no Balanço das Águas, um museu itinerante que navega pelo baixo São Francisco promovendo exposições, oficinas e eventos de arte e educação. fiquei apaixonada. Hoje parte do acervo do barco/museu e da Galeria Karandash está exposta na “Arte das Alagoas”, na‪ #‎designweekendsp‬. Por isso, convidamos a idealizadora de tudo isso, a artista Maria Amélia Vieira, para nos contar um pouco mais sobre suas andanças a bordo do Santa Maria:

21467_187503371423160_1321184845_nMaria Amélia e Dalton embarcam para mais um dia andarilho.

Meu marido Dalton e eu somos artistas plásticos, galeristas e colecionadores de arte. Vivemos e trabalhamos em Maceió no estado de Alagoas. Nesses trinta anos de parceria, a paixão pela arte popular e a vida se misturaram e fomos por aí, andarilhos, nos finais de semana, feriados e em todos os nossos momentos livres pelo nordeste brasileiro, mais precisamente nos cantos e recantos da nossa Alagoas, descobrindo e convivendo com artistas , adquirindo suas obras e divulgando suas produções.

Enfrentamos muitas dificuldades, estradas mal tratadas, sol rachando na nossa pele, trilhas erradas, mordidas de insetos; mas estávamos sempre motivados por encontrar “algo” encantador, “aquele objeto” essencial e único para compor a nossa coleção. Sempre fomos movidos pelos nossos corações apaixonados à cada nova descoberta.

582505_329135607200584_2134840774_nNavegando pelo Baixo São Francisco.

Em 2008, na intensidade de nossas buscas, descobrimos novos motivos, novos olhares, novas possibilidades de ver e existir. Aí começa a história de um barco, de um museu itinerante, de uma experiência que nos move e nos comove desde lá.

Com parte do acervo de nossa coleção, foi criado O Museu Coleção Karandash de arte popular e contemporânea e um típico barco do baixo São Francisco que denominamos O Museu no Balanço das Águas foi escolhido como primeiro núcleo da Coleção.

no-barco-os-bonecos-de-Clemilton-800x533Obras feitas por Clemilton durante a expedição “Ampliando Saberes”, 2015.

O barco intervém de forma lúdica no cotidiano dos moradores do baixo São Francisco, compreendendo os estados de Alagoas e Sergipe. Ao chegar alegremente nesses povoados, traz consigo exposições de arte popular e contemporânea, materiais e maquinários diversos como câmeras fotográficas, filmadoras, tintas, papeis, lápis de cor, argila, que são, através das oficinas, disponibilizados gratuitamente à população, criando condições ideais para o desenvolvimento da criatividade de todos os participantes.

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O artesão Chico Cigano em meio a obras expostas no barco.

É a arte que se pratica indiferentemente – sem preconceitos ou elitismo de classe – ali, nas margens das comunidades ribeirinhas, envolvendo um número enorme de pessoas que nunca tiveram a oportunidade, criando diálogos entre mundos, possibilitando intercâmbios, promovendo e ampliando os saberes dos Mestres da região para crianças e jovens; realizando, enfim, o “direito” à arte.

Por Maria Amélia.


Na semana especial do design em São Paulo, os alagoanos têm lugar especial reservado na exposição Arte das Alagoas, com obras do acervo da Galeria Karandash: 

Lar Center (av. Otto Baumgart, 500). De 12 a 15 de agosto, das 10h às 22h e 16 de agosto, das 14h às 20h. Entrada gratuita.


Fotos: divulgação Obrigada: Adélia Borges e Maria Amélia Vieira

 

Mestres Navegantes, por Betão Aguiar

Eu tenho um sonho: conhecer a região do Cariri no Ceará. Tudo começou quando conheci o Mestres Navegantes, pesquisa de manifestações musicais tradicionais e populares pelo Brasil, idealizada pelo músico Betão Aguiar.

Ao ver o vídeo de Mestra Margarida Guerreira, me encantei por conhecer uma região através de suas músicas e dos saberes de cada um desses Mestres. Na época, eu trabalhava na Trip Editora e soube que Betão Aguiar iria tocar em uma das festividades que estávamos organizando. Fui lá me apresentar para dizer: “Betão, esse trabalho de pesquisa e registro é muito importante”. Quando soube que muito foi inspirado também na figura de seu bisavô, fiquei ainda mais feliz em recebê-lo aqui no nosso Diário de Bordo:

A ideia do projeto Mestres Navegantes surgiu do prazer de vivenciar a simplicidade, riqueza de espírito e musicalidade de mestres populares que tive oportunidade de conhecer nos últimos anos. Também nasceu do sonho que outros e outras pudessem ver e viver tais belezas ou, ao menos, sentir o gostinho, mesmo que não possam ir visitar pessoalmente os lugares onde vivem essas pessoas.

Desde muito pequeno tive contato com tradições musicais de diversos estilos devido à minha criação soteropaulistana na baía da Guanabara, o que possibilitou aos mesmos olhos curiosos assistir tanto ao Ilê Ayê passar, quanto às festas do Divino com suas fanfarras, cortejos e procissões. Filho de cantor e produtora de shows, foi na música que encontrei um caminho para minha vida e nele sigo feliz até hoje.

IMG_0590Equipe registrando o mestre Paizinho, edição São Luiz do Paraitinga – Fotógrafa: Patrícia Garcia

Na virada do milênio, eu estava ainda sob impacto da surpreendente descoberta da diversidade cultural de Pernambuco com seus maracatus, cocos e afoxés (desses últimos só havia tido contato com os da Bahia – dos Filhos de Gandhi, Camafeu, Gerônimo, Gil, Edil Pacheco e os irmãos Gomes), quando tive o privilégio de participar de uma filmagem, acompanhando o cantor Moraes Moreira, para o projeto Musica do Brasil, do Hermano Vianna. Além dos vídeos, o projeto lançou um livro e uma caixa com discos contendo o maior mapeamento da pluralidade musical do nosso país que eu já havia visto e escutado na vida.

Foi algo que me marcou muito e que reconheço como a maior inspiração para a realização deste projeto, ao lado das Missões de Pesquisas Folclóricas do Mario de Andrade e do Documentário Sonoro do Folclore Brasileiro de Marcus Pereira, que vim a conhecer posteriormente.

Mestres NavegantesPenitentes de Barbalha, edição Cariri – Fotógrafo: Samuel Macedo

Mestres Navegantes não se propõe a ser uma pesquisa academicamente correta; trata-se de uma iniciativa simples, arriscada e desprendida, de mostrar um olhar sobre a musica produzida por esses mestres nos dias de hoje, um retrato sonoro dessas culturas que fique para a perenidade do meio digital.

A primeira edição do projeto foi dedicada à cultura de São Luiz do Paraitinga, SP, cidade que acolhe minha família materna há cinco gerações, desde que meu bisavô Mario Aguiar foi indicado para o cargo de juiz da cidade, na década de 1930. Apaixonado pelo lugar, onde criou filhos e netos, tinha o hábito de registrar suas impressões sobre o povo e a cultura local.

Por tanto gostar de conviver e prosear com os habitantes de lá, chegou a publicar um livro no final dos anos 40 sobre os costumes da Cidade Imperial, do qual extraí alguns textos que podem ser encontrados no livreto que acompanha caixa com os discos e filmes produzidos. No total são 5 discos de coletâneas com cerca de 100 musicas, 5 filmes, 5 programas de radio com os 17 grupos de Congada, Moçambique, Jongo, Brão, Calango, Adoração aos Presépios e Folia de Reis que registramos.

SAMU_080413_0006Mestra Maria do Horto, edição Cariri – Fotógrafo: Samuel Macedo

Na segunda edição, seguimos para o Cariri cearense, onde passamos tardes e noites memoráveis de brincadeiras ao longo de alguns anos de visitas e pesquisa. Foram produzidos 10 discos, 10 filmes e 5 programas de radio com os 53 grupos e mestres de Reisado, Banda Cabaçal, Maneiro Pau, Coco, Guerreiro, Penitentes, Inselenças, Repente, Cordel, Bacamarte, Embolada, Banda de Pife que encontramos no caminho. Um lugar singular que abriga grandes mistérios, lendas e mitos, onde contamos com a parceria fundamental da querida Dane de Jade e dos amigos da “Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Cariri”.

SAMU_290412_8356Irmãos Aniceto, edição Cariri – Fotógrafo: Samuel Macedo

A terceira edição foi realizada no estado do Pará, onde contamos com a parceria de dois especialistas no assunto, os músicos e pesquisadores Junior Soares e Edgard Chagas. Juntos traçamos uma escolha incompleta por natureza, que abrange apenas uma parte dos grupos existentes e ativos nas regiões da Ilha do Marajó e do Salgado Paraense. Gravamos 6 mestres e grupos de boi bumbá e 6 de carimbó para compor dois discos, coletâneas com 52 musicas que passeiam pelo imaginário caboclo e pelo universo do pescador, dos rios, do mar, das sereias e botos, do trabalho no campo e na lavoura.

SAMU-54802014Menino e o boi do boi bumbá de Ourém, edição Pará vol.1 – Fotógrafo: Samuel Macedo

Ao longo desses seis anos de trabalho foram lançados 17 discos com cerca de 400 faixas, 15 filmes, 10 programas de rádio e mais de 40mil discos distribuídos gratuitamente entre os grupos, mestres e comunidades que visitamos. Todo conteúdo pode ser acessado de graça nos canais do “Mestres Navegantes” no soundcloud, vimeo e facebook.

O projeto pretende seguir navegando por onde os ventos da nossa rica cultura popular estiverem soprando, aonde esses mestres ainda estiverem levando sua musica adiante, de geração em geração. O próximo destino ainda não está totalmente confirmado, mas as velas e a tripulação já estão preparadas para embarcar nos mistérios e alegrias das próximas expedições.

Sigamos festejando!
Betão Aguiar


Obrigada, Betão Aguiar, Cecília Garcia, Samuel Macedo. Foto de abertura: Menino tocando curimbó em Vista Alegre do Maú, edição Pará vol.1  – Fotógrafo: Samuel Macedo