Não vejo meu tio há alguns anos. E não imaginava que ele fosse se animar tanto com meu pedido. Eu queria conhecer um mestre da viola de cocho, instrumento tradicional do rasqueado cuiabano. Antes de abrir a oficina do filho de Seu Caetano, mestre violeiro, recebo o convite: “Vamos conhecer o rio Cuiabá, Ana”. Vamos. Afinal, ver um rio cheio para quem veio de São Paulo é quase miragem.
Ele me leva a São Gonçalo, onde todas as boas peixarias estão. Tudo fechado em dia de semana, pensamos em dar meia volta. No meio do caminho, vejo um fundo de restaurante escrito “Siriri”. Opa. Fomos bater palmas no pé da porta da casa com letreiro pintado “Flor Ribeirinha”. Quem varre a entrada é ela, Domingas Eleonor da Silva, conhecida como “uma das mães do Siriri”.
Quintal Siriri Cururu, em São Gonçalo
Como fã de carimbó de Mestre Cupijó, eu achava que as saias rodavam assim era lá no Pará. Que nada, pois Domingas me conta que é ali que acontecem os ensaios há muitos anos, mais de 40, que ela mantém o grupo com crianças e adultos, todos brincantes do Cururu e do Siriri. Não só, dá-se aula de cerâmica, artesanato e ensina-se a fazer as mais belas redes. As fotos no mural comprovam; um pequeno sorri com seu bichinho de barro nas mãos; a pequena roda sua primeira saia listrada.
Detalhes do mural da casa de Domingas
Sua avó, índia, apontou para ela quando nova e disse “esta herdou toda a minha espiritualidade”. Peça uma oração, ela fará. No seu altar de todos os santos, há sempre lugar para mais fé. “Muitas vezes as pessoas me perguntam como conseguir recursos para abrir um negócio, minha resposta é sempre: fé” e afirma que vai dar tudo certo. O seu negócio é a peixaria tradicional que atrai dezenas de turistas no final de semana. Domingo é o seu dia. É ela quem recebe cada um, quem canta ao vivo e cozinha! Como?
“O tempo certo de dourar um lado e outro do peixe é exatamente entre um refrão e outro da música.”
De jovem, ao lado da mãe, Domingas colocou de pé uma escola para as crianças. Teve ajuda de todo mundo que encontrava – “até os homens da região vieram limpar o terreno”. Casou-se cedo com a comunidade, com as festas, com a dança. O pai de seus três filhos, certa vez, lhe disse “ou eu, ou eles”. Com o coração apertado, disse adeus. Criados os filhos, vieram os netos. Um deles é o responsável pelas coreografias do seu grupo Flor Ribeirinha. Orgulho da avó, percebo: “se herdei a fé de minha avó, é ele quem herdou meu lado artístico”.
Domingas nos mostra seu Mato Grosso
A cabeça já arde com o sol, os olhos apertam para enxergar. Então, ela nos convida para entrar. Abre um livro enorme sobre Mato Grosso com fotos de alguns dos lugares em que ela já ensinou e apresentou as danças do Siriri e Cururu. Na casa, muitos panos de chita, santos, peças de cerâmica, caixas de som, instrumentos, até adereços de cabeça do carnaval: “fui rainha em carro alegórico esse ano!”, se exibe. E mais: por aqui é ela quem também toca a percussão. “Sou igual bombril, se faltar alguém, eu entro em cena”.
Tem quem que nasce festa, quem nasce alegria, quem nasce folia. Acredito muito nisso. Domingas é assim. Fez disso, meta: não perder nunca o rítimo e a alma do cuiabano.
Domingas roda a sua saia e dança o Siriri.
“Você tem uma missão.” me diz.
Eu conto sobre o Andarilha, sobre a minha avó e alguns sonhos. Cutuco para ver se ela completa a frase que começou. “Espere! Vou me vestir de siriri para fazermos uma foto” interrompe e vem rodar sua saia para minha lente. O jeito é registrar o momento e prometer retorno. Pois eu ainda volto, Domingas, a busca é meu novo destino e te encontrar faz parte dela.
Fotos: Ana Luiza Gomes e Bruno Nunes Obrigada: Tio Galvão e Bruno Nunes.
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