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Louriza: uma “ideiera” por definição

A melhor forma de começar Andarilha é aqui: Mato Grosso. Onde viveu grande parte de sua vida, minha avó. De nordestina tinha meio e o outro meio, desconfio, era mineiro. Já o seu coração era inteirinho esse calor.

“Você é neta de Josélia? Você se parece com sua vó”. Recebi o elogio com dentes amarelos de quem emenda o café com o almoço e a janta de tanto saborear a terra da farofa de banana. Assim conheci Louriza, coordenadora do núcleo “Bordadeiras da Chapada dos Guimarães”. Se perguntá-la, ela dirá que é  “ideiera”, como dizia seu pai quando ela, de pequena, já inventava e imaginava palavras, coisas, cores.

Antes de abrir as portas de sede das bordadeiras, Iza, como é carinhosamente chamada, nos convida para um copo d’água em sua casa. Espio 3 ambientes de cozinha, uma com fogão a gás, outro com fogão a lenha e um último com um forno de barro. “Você gosta de cozinhar, é isso?” fico curiosa. “Gosto de cozinha. Mas gosto mais mesmo é de reciclar as coisas. Veja esta porta: madeira de carroceria de caminhão. Tudo o que construí aqui com meu marido vem de algo que foi descartado”.

Screen Shot 2015-03-02 at 10.12.47 PMIMG_1586Na sede das bordadeiras, tudo é reciclado e colorido em cores doces.

Falando nos homens, escuto lá no fundo “Annnnnaaa!”. Para um menino quieto, me chamar em voz alta na casa de estranhos não é muito do feitio do Bruno. Ao chegar, vejo ele apontando para um livro no topo de uma pilha. “Você ilustrou?” pergunto. A resposta veio em um sorriso largo: “Sim. Veja, o meu primeiro livro é sobre avós“. E logo foi recebendo um abraço de Louriza, pelo trabalho que a encanta e que não foi para a outra pilha, dos livros a serem doados, pois ela tinha um carinho especial por este, como uma apaixonada avó.

Coincidências depois, ela me leva para conhecer uma típica casa cuiabana. Não existem corredores. De um quarto se passa para outro e o seguinte. Manoel de Barros ficaria feliz com sua definição de paredes: o adobe aparente. A surpresa maior está no quintal. Uma casa na árvore feito para Ana, sua primeira neta. As irmãs lhe deram uma máquina de tirar o musgo da casa, já que a Chapada é muito úmida. “Me deram o presente errado, gente. Eu amo as cores do musgos”. Quem não?

Screen Shot 2015-03-02 at 10.36.51 PMTelhas recicladas viram vasos do quintal.

Pois na parede dos fundos, agora no local sede das Bordadeiras, os musgos recebem as plantas que Iza cultiva em telhas de arame encontradas por aí. “Quando eu recrio algo aqui com as meninas, elas gostam tanto que testam fazer também em suas casas”.

Pois muito começou assim, do aprendizado. Quando Louriza viu o anúncio que Matizes de Dumont, bordadeiras mineiras, dariam um curso para mulheres carentes na cidade, correu para se inscrever. Não teve permissão, mesmo que ninguém tenha se inscrito. “Mas eu sou carente de conhecimento” brincou. Conseguiu, junto a outras mulheres, um acordo. Elas aprenderiam a arte se passassem adiante. Pois assim começou seu trabalho com mulheres, muitas delas realmente com poucos recursos financeiros.

IMG_1588Detalhe da parede da sede das Bordadeiras.

Não é a primeira aula que Iza dá. Alfabetização de crianças sempre foi sua especialidade. Hoje, quer descobrir um método de ensino para inspirar suas 35 mulheres bordadeiras a desenhar. Quem dá o primeiro traço é sempre ela, conta. Muito mais do que bordados, este grupo é guardião de patrimônios imateriais. As famosas frases em cuiabanês enfeitam os panos e descubro que sou “ajojada” (fala-se “adjiodjada”, bem cantado), isto é, ajuntada, ou, no bom mineirês, “grudadinha”.

Screen Shot 2015-03-02 at 10.12.04 PMBordados das associação Bordadeiras da Chapada.

Um dos bordados me chama bastante a atenção; uma coruja de cores muito vivas. “Essa bordadeira usa até 4 linhas de cores diferentes em uma mesma agulha”, explica. Mostra vários trabalhos inspirados em poetas cuiabanos, na cultura chapadense, cheia de orgulho. Mas o peito enche muito para me contar de Duda, sua neta que, mesmo tendo algumas dificuldades de locomoção e de pega, faz os desenhos mais lindos para a avó. “Ela as vezes coloca o lápis na boca e faz”, conta a vó-coruja!

Na sede das Bordadeiras da Chapada, Iza está cheia de perguntas. Como tornar esse trabalho sustentável? Como pensar os produtos comercialmente? Como transformar a arte em negócio? Não sei muito sobre isso, Iza. Como você, gosto de costurar meus pensamentos em tons e tecidos, em palavras e imagens. A única coisa que tive certeza é que o que vocês mulheres fazem, ao seu reunirem para bordar, refazer objetos, desenhar mandalas, ouvir música, compartilhar a vida, é muito mais do que bordados. Vai saber se essa infinitude de delicadezas cabe em metas de venda. Matemáticos, se puderem, façam os cálculos e nos ajudem, por favor. Por aqui, somos “ideieras”.

IMG_1197Chuva na Chapada dos Guimarães, MT.

Pois deve ser a quinta ou sexta vez que vou a Chapada; sempre um calor abafado, sempre sol e muita cachoeira. Dessa vez, choveu. E vi minha sobrinha Cecília ir tomar seu primeiro banho de chuva. Me lembrei das minhas memórias de pequena, quando meu tio colocou toda a meninada na caminhonete para ir à sua fazenda. Por alguns dias, eu vivia na beira do rio, eu dormia numa beliche cheinha de caixas de marimbondo e, sim, eu tomava banho de chuva: gelada! Entrava em casa batendo o queixo, me enrolava na toalha e me aninhava nos braços de minha avó. Nessa lembrança, tudo fez mais sentido. Mato Grosso sempre foi esse abraço, esse lugar onde eu só tinha que ser: criança. Ou melhor: neta. E como eu estava com saudades.


Texto: Ana Luiza Gomes Fotos: Ana Luiza Gomes Obrigada: Louriza, Bruno, Dinalva, Isabela, Cecília, Elena e Leo.

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